Vivian Biazon El Reda Feijó, comandante do maior hospital do interior paranaense, passou o último réveillon isolada em um quarto, com medo de morrer em decorrência da Covid-19. Os poucos fogos que espocavam naquela celebração contida foram ouvidos por uma mulher acamada e uma família apreensiva. Com redução do volume de plasma no sangue (hipovolemia), muita fraqueza e dores no corpo, a enfermeira experiente por pouco não foi internada. Ficou 17 dias em casa, um respiro inoportuno num triênio intenso, com jornadas de até 16 horas diárias e sem férias.

Vivian Feijó faz questão de enaltecer a solidariedade dos servidores da UEL e os gestos de carinho e solidariedade da comunidade
Vivian Feijó faz questão de enaltecer a solidariedade dos servidores da UEL e os gestos de carinho e solidariedade da comunidade | Foto: Gustavo Carneiro - Grupo Folha

Era um prenúncio de que 2021 não seria um ano igual aos outros, ainda que 2020 já tenha parecido um pesadelo daqueles para quem é da área médica. “O ano passado (2020) foi a subida da montanha-russa”, compara a doutora em Enfermagem pela UEL (Universidade Estaduale pesquisadora de gestão de serviços de saúde e processos de trabalho. “Este ano, foi a descida”, conclui a perfeita metáfora, na qual o brinquedo assustador se desloca em um trilho de memórias trágicas, com altas doses de adrenalina, medo, angústia, tristeza, mas também de redenção.

As reflexões do confinamento e a vitória sobre o vírus, pondera, a deixaram mais forte para prosseguir. E realmente era preciso. A volta à rotina coincidiu com uma escalada que parecia não ter fim. A pandemia avançava e o HU se tornou o centro das atenções no Norte do Estado em março e abril, quando chegou a abrigar um pico de 158 pacientes em estado grave simultaneamente e até 20 óbitos em 24 horas. Neste fim de ano, é possível mensurar melhor o peso daqueles dias letais. Em 2020, o município registrou 436 mortos e 21.454 casos. Este ano, até terça-feira (21), o acumulado já havia atingido 2.321 mortos e 88.998 infectados.

icon-aspas “Os gestores estavam angustiados, principalmente com a possibilidade de faltar oxigênio”

Não há estatísticas de quantas decisões Vivian tomou naqueles dias, mas em nenhuma delas havia margem para erro ou hesitação. As janelas abertas do escritório ventilavam o ambiente ao mesmo tempo que deixavam audível o choro dos familiares em luto no pátio: era preciso se esforçar ainda mais. O comando exigia preparo e firmeza mesmo quando, na correria dos afazeres, uma imagem chocante chegava em seu whatsapp. Foi deste modo que ela soube que uma fila com oito ambulâncias trazia mais pacientes para um Pronto Socorro já colapsado. “Os gestores estavam angustiados, principalmente com a possibilidade de faltar oxigênio”. O temor não se concretizou nos leitos, mas os torpedos de gás usados nos deslocamentos internos dos pacientes foram insuficientes e sem nenhuma possibilidade de compra devido a escassez no mercado. “Para ser atenuado, este problema exigiu muita organização da equipe e capacidade de reinvenção dos processos”, resume.

A agenda tensa destes dias tinha cardápio variado, que incluía o diálogo com líderes políticos em busca de leitos para seus conterrâneos, questões relacionadas à estafa da equipe, a negociação com fornecedores e o desafio de informar a sociedade sobre a necessidade de prevenção. E também havia a preocupação com o acolhimento dos familiares dos doentes e a meta de humanizar este contato. Com orgulho, ela frisa que o HU foi um dos pioneiros na adoção do Conectando Vidas, projeto desenvolvido pelo Hospital Sírio Libanês baseado em vídeochamadas. “O HU atendeu pacientes de mais de 90 municípios e o projeto foi fundamental neste esforço de comunicação”.

icon-aspas “Consumimos muita energia em desmentidos e tivemos que lutar para manter nossa credibilidade, porque o receptor da notícia falsa muitas vezes não recebe a informação verdadeira"

Ano de pico da pandemia, ano de pico de notícias falsas. Não bastassem todos os desafios previsíveis, as fakes news atormentaram a rotina da unidade, em especial a vida da gestora, com surtos que não existiram, com mortes inventadas de crianças na UTI pediátrica, com a falta de medicamentos que estavam sim à disposição dos pacientes “Consumimos muita energia em desmentidos e tivemos que lutar para manter nossa credibilidade, porque o receptor da notícia falsa muitas vezes não recebe a informação verdadeira. É algo que gera insegurança e preocupação adicionais nos pacientes, nos familiares e na própria equipe do hospital”.

Em relação ao tratamento precoce, tema mais notório do fenômeno no Brasil, Vivian é enfática em relação à rotina de 2021 (no início da pandemia, em 2020, o HU participou de um estudo multicêntrico internacional que comprovou a ineficácia da hidroxicloroquina/cloroquina e os altos riscos da prescrição para alguns tipos de pacientes. “A equipe estava coesa, orientada por protocolos claros e seguiu todas as recomendações das principais autoridades sanitárias do mundo. Este ano, o assunto já estava superado e uma parcela pequena dos pacientes questionou a decisão de não prescrever estes medicamentos”, esclarece.

icon-aspas “A equipe estava coesa, orientada por protocolos claros e seguiu todas as recomendações das principais autoridades sanitárias do mundo"

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Mulher de fé, frequentadora das missas da Catedral e admiradora do padre Rafael Solano, Vivian diz que se fortalecia com uma canção de outro sacerdote, Fábio de Melo, chamada “Nas Asas do Senhor”, que diz em uma estrofe “Posso voar e subir sem me cansar/ Ir pra frente sem me fatigar/Vou com asas/Como águia, pois confio no Senhor”. Ela frisa que houve sim momentos de fraqueza, mas que quando estes versos tomavam o carro no trajeto entre a casa e o hospital, o espírito se nutria. “Este hino me sustentou”.

icon-aspas "Posso voar e subir sem me cansar/ Ir pra frente sem me fatigar/Vou com asas/Como águia, pois confio no Senhor”

Como fim de ano é ocasião oportuna para sonhar com dias melhores, mas também para agradecimentos sentimentais, a comandante faz questão de enaltecer a solidariedade dos servidores da UEL e o mutirão que se formou quando houve uma avalanche de infectados e a qualidade do atendimento esteve muito ameaçada. Ela lembra que a pandemia tirou muitos profissionais de combate exatamente quando a demanda aumentou. Muitos trabalhadores voluntários se juntaram à equipe, os servidores do Hospital de Clínicas se dispuseram a integrar as escalas no HU, enquanto funcionários do campus produziam máscaras e envasavam álcool em gel em centenas de frascos diariamente.

Vivian também exalta atitudes da comunidade. Desde as professoras e alunos da rede municipal que enviaram cartas de apoio provocando uma grande comoção entre os intensivistas, até a doação de toneladas de alimentos que abasteceram - com sobras - a cozinha, permitindo a distribuição de cestas básicas para as famílias dos pacientes mais pobres. Foram preciosas também as doações de equipamentos de proteção individual em períodos nos quais até mesmo a compra deles era praticamente impossível.

icon-aspas “A enfermagem me fez uma pessoa muito melhor”

Observada por muitos estudantes como um exemplo de sucesso na sua área, não foi na escola ou em algum teste vocacional que Vivian descobriu qual caminho iria trilhar.

Decidiu seguir a área de biológicas no ensino superior ainda na adolescência, quando o pai sofreu com um quadro grave de diverticulite e ela observou com atenção o tratamento, mais precisamente a dedicação de uma enfermeira especializada. “Ele teve uma colostomia e eu fiquei impressionada com o preparo, a habilidade e a elegância daquela profissional. E pensei: acho que eu posso fazer isso”.

No ano seguinte, deixou sua cidade natal, Assis (SP), na Média Sorocabana, para concluir o ensino médio em Londrina. Dividiu uma república com mais cinco meninas no Jardim Petrópolis, muito próximo do Colégio Máxi e seu famoso Terceirão. Era 1992. O investimento da família e a aplicação nas aulas garantiu o ingresso no curso de Enfermagem da UEL no ano seguinte. Ela encontrou a própria veia de gestora no último semestre do curso, nas disciplinas voltadas à liderança e gestão, o chamado internato, onde a habilidade natural encontrou as lições avançadas em gerenciamento. “Me considero uma líder nata”, assume a ex-integrante do Centro Acadêmico.

Não que tenha evitado ser subordinada, receber ordens e estar na linha de frente. De uniforme, passou por toda a tensão típica que caracteriza a fronteira entre a vida e a morte. “A enfermagem me fez uma pessoa muito melhor”, garante, após ter trabalhado anos em terapia intensiva e atendimento de urgência e emergência.

Vivian confessa que a menina ambiciosa que ingressou na UEL tinha um sonho de trabalhar no mais renomado hospital privado do país, o Israelita Alberto Einsten, em São Paulo, e que, portanto, comandar o HU nunca foi uma meta na juventude. O projeto da então estudante de trocar Londrina pela capital paulista foi arquivado por uma história de amor, entre ela e o hoje angiologista Luciano Facci Feijó, que começou no último ano de graduação e já dura mais de duas décadas - o casal tem dois filhos, Isadora, 22 anos, e Luciano Filho, 15.

icon-aspas “Ainda não decidi se vou tentar a reeleição para a superintendência. É uma decisão que vou tomar mais à frente”

Foram 18 anos de carreira como servidora da unidade até atingir o topo da gestão hospitalar, com passagens por muitos cargos e setores. A prova de fogo da pandemia, as premiações, as solenidades de reconhecimento e os elogios públicos das autoridades podem ter colocado a assisense em outro patamar na vida pública. Com a projeção e o respeito granjeados durante a pandemia e com os partidos em busca de nomes para atender a cota de mulheres candidatas exigidas pela Justiça Eleitoral, há quem considere Vivian um nome potencial para as próximas eleições - alguns ventilam a postulação para a Assembleia Legislativa e outros falam até na concorrência para uma cadeira na Câmara Federal, mas ela desconversa e prefere dizer que vai se empenhar nos últimos meses de mandato no atual cargo, que expira em junho. “Ainda não decidi se vou tentar a reeleição para a superintendência. É uma decisão que vou tomar mais à frente”, despista.

OUÇA A ENTREVISTA COMPLETA:

Folha de Londrina · Vivian Feijó - A jornada através da pandemia à frente do HU

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