Aplicativos com orientações sobre a retirada de auxílios, cadastros que precisam ser atualizados na internet, consultas médicas on-line e educação a distância. A pandemia do novo coronavírus tornou o universo digital o principal meio para a busca de informação, comunicação e entretenimento durante o isolamento social. No entanto, mais de 30 milhões de brasileiros não têm acesso à internet em casa. A estimativa é do coordenador do Observatório Social da Covid-19, Marden Campos, com base em dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).

Imagem ilustrativa da imagem Mais de 30 milhões de brasileiros não têm acesso à internet
| Foto: Gustavo Carneiro

O observatório, criado na UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) para acompanhar os indicadores de vulnerabilidade social, tem parcerias com outras instituições do País. O coordenador da equipe é graduado em Ciências Econômicas, doutor em demografia e professor no Departamento de Sociologia da universidade. Para ele, o desconhecimento do perfil dos brasileiros antes mesmo da pandemia é o que mais chama a atenção dos pesquisadores.

Qual é o panorama hoje da exclusão digital no Brasil?

A internet amplifica algumas formas de desigualdade social previamente existentes. Por exemplo, a escolaridade. As classes mais escolarizadas têm um ganho muito alto com a inserção da internet ou do digital na vida delas porque elas conseguem processar, otimizar e qualificar a informação de forma amplificada. Já as classes mais baixas, por sua baixa escolaridade, às vezes ficam reféns de conteúdos digitais que elas não conseguem criticar.

Além disso, temos também o "digital gap" ou o fosso digital que é não ter acesso à internet. O nosso trabalho recente foca nesse segundo aspecto. Ter a internet como ativo social gera uma nova forma de desigualdade social que é estar ou não conectado. Isso tudo é um campo que vem desde a década de 1990, 2000 e agora é amplificado com a pandemia da Covid-19.

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Com as medidas de distanciamento social recomendadas e, em alguns casos, impostas em muitos países e estados, se propõem que as pessoas trabalhem de casa e apliquem o chamado home office. Um dos aspectos que interfere nisso é a pessoa ter ou não internet em casa e internet com qualidade suficiente para que ela consiga desempenhar o trabalho que desempenhava anteriormente. De cara já percebemos que tem alguns tipos de trabalho, geralmente realizados pelas classes mais baixas, que ainda que a pessoa tenha internet, isso não resolve nada. Um serviço doméstico ou um trabalho na construção civil, por exemplo.

Agora entre aqueles que têm essa possibilidade de realizar atividades a distância, eles dependem de uma boa conexão em casa. Aí chegamos ao número que 42 milhões de brasileiros não tinham acesso à internet em casa em 2017. Isso deve ter diminuído um pouco, mas não zerou. Provavelmente, nós temos ainda mais de 30 milhões de brasileiros hoje sem acesso à internet em casa. Isso não só os impossibilita que realizem algum tipo de atividade laboral como traz mais dificuldade de se relacionar com parentes, com conhecidos, com o próprio estado para regularizar documentos ou solicitar algum tipo de auxílio, entre outros serviços. Isso também limita o acesso à informação já que a internet é um grande meio de divulgação sobretudo durante uma pandemia, sobre como se comportar, como lavar as mãos, fazer máscara, essas coisas. Se a gente já tinha os diferentes e os desiguais, agora a gente também tem os desconectados como uma nova camada social desprivilegiada.

O que a chegada da Covid-19 e essa exclusão digital devem trazer de consequências sociais?

Tem um impacto que já está ficando relativamente claro para nós, embora ainda não tenhamos números que é a questão do ensino. Isso claramente para determinados tipos de escolas, como as particulares e as universidades particulares direcionadas para um público de alta renda, elas saem na frente porque os alunos todos têm internet e sabem usá-la. Esse tipo de instituição de ensino vai ter mais facilidade de transferir as atividades didáticas para o digital enquanto em escolas públicas, de pequenas cidades, que lidam com populações carentes, é praticamente impossível que o ensino seja transferido para a internet, ou seja, muitos alunos param de estudar.

Se esse efeito do distanciamento social se prolongar por muito tempo e temos evidências que isso deve durar meses ou anos, ao menos enquanto não houver uma vacina; é bem possível que a gente já tenha um impacto grande de desigualdade na escolarização. Enquanto algumas escolas vão conseguir transferir parte das atividades didáticas para a internet, outras nem sequer irão começar. Dou um exemplo, para você entender a amplitude do problema. A Universidade Federal de Minas Gerais não teve como transferir as suas atividades didáticas para a internet não só porque os conteúdos não estavam modulados para isso, mas porque muitos alunos não tinham uma conexão regular que permitisse a eles que continuassem o curso. E estamos falando de uma universidade de ponta, uma das maiores do Brasil, localizada em uma região extremamente rica.

Óbvio que se for um isolamento social de um, dois ou três meses, o impacto será menor, mas nada garante para nós que as aulas serão retomadas em algum momento do ano. Se nós trabalharmos com um cenário real de que enquanto não tiver uma vacina, não vai ter jeito de colocar 50 crianças em uma sala de aula, aí nós podemos falar em um longo prazo para essa retomada.

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Que soluções poderiam ser propostas durante a pandemia para reduzir essa desigualdade?

A gente sabe da experiência de algumas regiões em que os estados fizeram esforços para conectar parte da população que estava desconectada. No enfrentamento à epidemia, a conexão digital é importante, mas, no Brasil, nós temos demandas muito mais importantes que precisariam vir antes dessa. Temos que garantir comida, testes para Covid-19… A área da saúde agora é prioritária. Teve regiões em que os governos forçaram a população a ter um celular, instalar um aplicativo e compartilhar a localização. Agora temos uma discussão também sobre a vigilância e a privacidade digital. Pode ser que agora o sistema de vigilância digital ganhe legitimidade para adotar determinadas estratégias invasivas de monitoramento contínuo e individualizado da população, mas essa seria outra questão.

Seria ótimo no Brasil se a gente conseguisse conectar a população inteira, mas se você analisar que há um percentual muito elevado de pessoas que não têm nem o primeiro grau completo, não adianta eu dar um tablet para essa população. A internet é mais uma camada, mas ela não é a mais importante. Antes vem a renda, a comida, a segurança.

Quando foi criado o Observatório Social da Covid-19 e em que consiste esse trabalho?

O observatório foi criado nas últimas semanas de março para subsidiar a sociedade como um todo com informações científicas sobre o impacto das políticas públicas ou da ausência delas direcionadas ao controle da pandemia de Covid-19. Começamos com a discussão do isolamento vertical e horizontal, criando dados sobre como os idosos vivem, sobre a questão da internet e agora estamos indo para as análises relacionadas aos trabalhadores informais. Temos várias frentes de atuação. São sete pesquisadores da UFMG, além do mesmo quantitativo de alunos da universidade. O observatório tem atuado em rede também. Já temos uma parceria com a Universidade Federal do Rio Grande do Norte, com a Fundação Joaquim Nabuco e estamos agora em discussão com o pessoal de sociologia da USP. Está se criando no Brasil uma espécie de rede de observatórios com esse perfil de vulnerabilidade social. Mas as coisas estão andando muito rápido. Nosso papel é produzir dados sobre vulnerabilidade social para medidas de contenção da epidemia.

O que mais chamou a atenção até agora durante as pesquisas desenvolvidas?

O que mais chama a atenção ainda é que há uma espécie de desconhecimento da sociedade e de parte da classe política da situação em que os brasileiros vivem. A questão é "fique em casa", mas isso pressupõe que as pessoas têm casa. Que condições essas pessoas têm em casa? Parte-se de um princípio que aquele ambiente é seguro. Para as classes mais altas, costuma ser. Casas com cinco, seis moradores, três em cada dormitório, seis moradores em locais com 20 ou 30 metros quadrados, sem água ou com banheiro fora de casa... Somos defensores do "fique em casa", mas que casa é essa? Esse é o primeiro ponto. Também se fala muito que as pessoas devem cuidar dos seus idosos. Se a gente parar para pensar vai perceber que são os idosos que cuidam de grande parte da população. São as pessoas que têm aposentadoria, que ficam com os netos. É hora de prestar mais atenção na ciência e nas pesquisas sólidas que o Brasil apresenta.

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