Leio, nalgum sítio, que o prefeito de Curitiba (Rafael Greca) teria encaminhado projeto de lei ao legislativo da terra dos coxas, cuja temática dificulta/proíbe (não entendi ao certo) dar de comer às pessoas em situação de rua – em plena efervescência pandêmica...

Difícil acreditar que alguém se ocupe disso e, podendo/devendo não fazer o que foi feito, faz exatamente o que Rafael fez – Pode isso Arnaldo?

Curitiba é o meu abismo. Olho e não vejo o fim. Há uma amarga surpresa a cada contorno. Um paralelo que não desanuvia concorrer com meus anseios, então busca estabelecer-se enquanto transversal atemporal de nosso instante estúpido de insensibilidade.

Definitivamente não há licença poética que eufemize qualquer projeto de lei com esse viés.

A fome, imaginamos que Rafael a desconheça, é um cancro supurando a cada redemunho que o estômago vivencia quando a comida falta.

Ininterrupto movimento não deveria (jamais) ser tangenciado no desconhecimento de quem poderia, por exemplo, não ter enviado um projeto de lei, ao legislativo, cujo escopo contribua para a ferida que não cicatriza...

Efetivamente estamos um projeto malacabado de existir, que contabiliza erro sobre erro – e não só por aqui, ainda que o abismo esteja há trezentos e noventa quilômetros de nós outros...

Lá, por São Paulo, expulsam os que dormem ao ‘abrigo’ de viadutos, aqui em Curitiba querem punir quem alimenta os que não têm do que comer.

Noves fora a estupidez humana, conto como conheci Rafael. Foi em um concorrido casamento em Londrina, no Country Club, há uns bons anos. Do enlace guardei a beleza da noiva (como sói ser toda noiva) e de um amigo comum que nos apresentou...

Educado ao extremo, o amigo se me referiu enquanto um dos maiores advogados de Londrina (absurda gentileza), ao que Rafael teria respondido: - se é dos melhores não sei, mas de certeza é dos maios gordos...

Eduardo Ferreira e João Graça me valeram na hora e ri da brincadeira. Nunca a esqueci, até porque estou mais gordo do que deveria/queria, há uns vinte e tantos anos...

Mas ela me deu a falsa pista de que Greca valorizasse a comida para além dos estereótipos. Vejam vocês que sou, efetivamente, gordo, mas isso não me define – antes o contrário; me identifica...

Gordo se torna, com o tempo, solitário e triste ponto de referência, de matriz não elogiosa que convola piadas que contrapõe àquela solidão e tristezas, antes mencionadas, ao cidadão em questão que, para encaixar no desenho, passa a significar o que se busca dar de significar na infâmia da conjugação de sua condição corporal...

Neste contexto, nos anos setenta, por ocasião da transmissão dos playoffs da NBA, contrapondo os então Bullets (atuais Wizards) de Washington contra os Spurs de San Antônio, em disputa que marcava três jogos a um para os DC, o narrador do jogo asseverou: ‘a ópera só acaba quando a senhora gorda parar de cantar’...

A fome é a gordura dos que não se colocam no lugar do outro, estabelecendo no egoísmo dos não empáticos uma qualquer não condição de partilha que é, em sua essência, a negação mais visível do cristianismo...

Rafael, não recordo o cardápio do evento (com certeza excepcional), mas lembro de você me dizendo o que eu era e continuo a ser – gordo...

Hoje, terça feira, seis de abril, nossa desesperança (afinal o inverno se aproxima) grassa a fome dos que não compadecem do outro e, neste contexto, aniversaria meu amado filho João Neto...

Vou me permitir, Rafael, em atenção ao projeto de lei que vós enviardes à Câmara e que trata da fome alheia, mudar meu plano original de assar uma costela em tiras para comemorarmos em família (cinco pessoas magras, sou o único gordo) a data feliz, pela leitura de uma peça do maior de todos os bardos...

Penso no Mercador de Veneza para, partindo da belíssima defesa de Pórtia, lembrar a não mais esquecer (‘forever and a day’) que ‘a qualidade da misericórdia não é prejudicada. Cai como a chuva suave do céu sobre o lugar abaixo. É duas vezes abençoado: abençoa aquele que dá e aquele que recebe’.

Reveja postulados Rafael – ainda há tempo – afinal eles podem engordá-lo e lhe cobrar além da usual ‘libra de carne’...

Tristes trópicos onde quem dá de comer a quem tem fome tem que se preocupar com a própria conduta.

Feliz aniversário Filho, eu te amo...

João dos Santos Gomes Filho, advogado