No âmago da reflexão filosófica há uma dicotomia que transborda no seguinte questionamento: a ética é individual ou social? A ética é intrínseca ao caráter individual ou compreende os valores socialmente partilhados em uma coletividade? A dicotomia indivíduo-sociedade perpassa a história do Ocidente e reflete nas teorias políticas.

Um liberal, por exemplo, coloca todo o peso no indivíduo e sustenta a bandeira dos direitos fundamentais como trincheira protetiva a defender o indivíduo na sua integralidade, independentemente dos valores coletivos, quase sempre formados por maiorias, que gravitam na esfera cultural, religiosa, política, racial e sexual. A liberdade individual é um primado do liberalismo. Diante do Estado é o indivíduo quem deve prevalecer. Da reunião de indivíduos forma-se o coletivo.

Por outro lado, um republicano ou defensor do Estado Social tende a colocar o peso no coletivo, fincando bandeiras em nome do povo e do bem comum. A soberania popular, referendada pelo caráter majoritário, respalda e legitima a gestão do poder estatal exercida pelo povo e para o povo. O Estado predomina sobre o indivíduo, pois a ele compete lidar com a administração do bem comum – que deve preceder o indivíduo.

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As duas visões engrossam as divergências no campo da política. A pandemia, no entanto, impôs a difícil tarefa de conciliação dos dois lados da moeda. Na ótica do indivíduo, o direito à saúde não implica no dever (obrigação) de ser vacinado. Na perspectiva do bem-comum, a pandemia provavelmente não alcançará o seu fim se a coletividade não for vacinada. Eis um dilema político com lastro ético.

Hoje, atingimos o patamar de 90% dos internados por Covid, sem qualquer vacinação. Se atentarmos para o trágico número de mortos, então nos aproximamos dos 100%. A variante Ômicron está longe de repetir a façanha mortífera da Gama e da Delta. Porém, dizem os cientistas que é tremendamente mais contagiante e por isso é a responsável pela corrida aos prontos socorros das UBS e dos Hospitais particulares. O Brasil, com um aumento de 600% de infecções nas últimas duas semanas, aproxima-se da preocupante situação vivenciada hoje na Europa.

O primeiro ministro de Quebec, no Canadá, François Legault, e o seu colega alemão Olaf Scholz, levantaram nos últimos dias a questão de taxar os não vacinados, que buscam o sistema de saúde, e que nos dois países, diga-se de passagem, é “orgulhosamente” gratuito! Ora, porque exatamente num momento pandêmico, em que os cidadãos mais precisam da agilidade estatal no acolhimento da sua demanda sanitária, o Estado pondera essa coparticipação nas despesas? Para apimentar a discussão, embora não haja registros oficiais, diz-se que nos dois países mencionados, a maioria da população aprovaria essas medidas!

Na maioria dos países ocidentais europeus, o Estado de Bem-Estar Social tornou-se inegociável nos últimos cinquenta anos, no que diz respeito à sua responsabilidade social em relação a concretização de políticas públicas nos campos da educação, da saúde e da segurança. Contudo, a duras penas! A questão previdenciária correlacionada ao envelhecimento da população e o aumento do desemprego tem provocado tensões e até pressões sobre esse sistema, alimentando sobremaneira o ressurgimento da extrema direita, com uma visão de ausência quase total do Estado na vida do cidadão.

Haverá indícios de que a pandemia legitime o Estado a impor pretensões coletivas em detrimento dos valores individuais defendidos pelo liberalismo e seus afiliados? Do ponto de vista pedagógico é necessário compreender o dilema de forma dialética, tendo o cuidado de preservar a liberdade individual e o bem comum sob a insígnia do bom senso, sem desconsiderar as imprevisíveis consequências que podemos colher.

Manuel Santos, padre na Arquidiocese de Londrina, e Clodomiro Bannwart, professor na Universidade Estadual de Londrina.

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