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Opinião 5m de leitura

ESPAÇO ABERTO - O dever cívico e a fome

Quem são vocês que esmolam em semáforos, esquinas, que pedem por pão ou dinheiro? Há opção nesse tipo de vida?

ATUALIZAÇÃO
09 de maio de 2022

João dos Santos Gomes Filho
AUTOR

Leio na rede mundial que um pastor fluminense disse que mendigos têm o dever cívico de passar fome. Queria não ter lido. Noves fora, vamos lá: ninguém tem dever de passar fome, oh pastor – sob qualquer prisma...

Deveras, o que o pastor fluminense parece entender por ‘dever’ desequilibra sua visão apedeuta e, na medida em que ele não se limitou a besteirar para suas ovelhas (seguramente acostumadas ao pasto viciado), me obrigo esclarecê-lo.

Vou à exegese com apoio em Kant para dessumir que a expressão dever alcança a condição de ‘obrigação de agir conforme uma lei moral ditada pela razão pura’. Observe, pastor, que a razão está compreendida em estado bruto (sem invasão de qualquer natureza) e, por isso, não concorre aqui qualquer regra e valor religioso ou político. Há a experiência racional e nada mais.

Olha que interessante, pastor: do alto de seu púlpito, de onde o senhor verborrage para suas ovelhas, seria compreensível que sua razão obedecesse uma qualquer condução religiosa – afinal estás em sua igreja. Na rede mundial não, pastor, que nós outros não estamos a balir para sua ausência de empatia.

Desgraçadamente um líder religioso (és pastor, afinal) perpassa o púlpito e aporta na fundamentalização que socorre os primitivos quando a vida lhes cobra sinais de grandeza. Para tanto esquece o próprio Cristo quando este repartiu o pão.

Pastor, ser grande demanda desapegar da própria ignorância e mergulhar na busca por sabedoria. Quem sabe, assim, o senhor desata o nó do preconceito neoliberal que orienta sua visão neopentecostal e, de fato e por amor ao próximo, aprende um pouco com o padre Júlio Lancellotti, aquele que há mais de vinte anos mata a fome de viciados e esquecidos da sorte em São Paulo.

Não é demais um pastor apreender com um padre – afinal não somos todos cristãos? Eu mesmo, católico ausente, aprendo todo dia com a bondade e grandeza do pastor Messias; de fato um homem muito adiante de sua época.

Para seu rebanho sugiro, respeitosamente, esquecer vossa fala e, quem sabe, diminuir ou deixar de pagar o dízimo – afinal, pastor, receber para dar palpite dessa natureza me parece mais degradante do que mendigar.

Aliás e no ponto, gostaria de me dirigir aos mendigos que o senhor acusa de faltar com o dever cívico quando buscam matar a própria fome. Quem são vocês que esmolam em semáforos, esquinas, que pedem por pão ou dinheiro? Há opção nesse tipo de vida?

Pastor, que oportunidade o senhor perdeu de se calar. O silêncio que seu púlpito nos roubou está maculado com o sangue do preconceito neoliberal que faz de cada um de nós uma pedra a ser lançada no tabuleiro da vida, sob o olhar insensível do deus dos insensíveis.

Esse mercado que alimenta preconceitos que desnaturam a alma, enfim se separa do corpo, suposto que ninguém com alma diria: segue com fome, pois esta é a conta que o Pai lhe impõe em face de tua irrelevância mercadológica, oh ser improdutivo e mau cheiroso. Resigne-se com a fome que te resta...

És corpo, sim, pastor, mas já não possuis alma, suposto que vossa essência está empregada, creio que informalmente, produzindo lugares no céu, indulgências e outras teratologias mais em favor de quem se dispõe ouvir e concordar com vossa visão de mundo sobre fome e vagabundos.

Desafortunadamente, para o senhor, pastor, não penso que a expressão vagabundo seja pejorativa. Chaplin, um dos gênios da humanidade, imortalizou todo vagabundo com seu personagem celestial.

O vagabundo chapliniano foi, talvez, a maior contribuição cultural do século vinte em favor da humanidade. Assim e então, por amor à Carlitos, deixo-vos uma sugestão, pastor: ‘sorria, ainda que seu coração esteja doendo e mesmo que suas ideias estejam lhe quebrando, porque enquanto houver nuvem no céu você sobreviverá e, se sorrir através de seu medo e de sua tristeza, talvez amanhã o sol estará brilhando’.

Sorria, volte ao púlpito, esqueça a rede social que nós não somos ovelhas em busca de vossa benção, receba o dízimo e cuidado com o preconceito pastor, afinal é essa a medida dos que traíram a própria paixão: descuidaram da alma e deram especial relevo ao corpo.

Faça, enfim, tudo o que o púlpito lhe parece ofertar, mas tenha a grandeza de esquecer os vagabundos: nós não merecemos vossa preocupação preconceituosa pastor: de nossa fome cuidamos nós.

Tristes trópicos, onde a vida segue e a fome campeia, enquanto há gente palpitando sobre a fome alheia.

Saudade pai, você me ensinou a dar de comer a quem tem fome. Eu ensinei seus netos e espero fazer o mesmo com os bisnetos...

João dos Santos Gomes Filho, advogado

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