A cidade se constrói a partir de múltiplas versões, algumas delas assumem um predomínio em nosso imaginário social e nas redes de afeto que estabelecemos com os lugares, pessoas e memórias. Londrina foi planejada por iniciativa inglesa da Companhia de Terras Norte do Paraná, o que não nos é novidade alguma. Em 2009, quando completava 75 anos, algumas de suas ruas foram marcadas por essa memória colonial com o estabelecimento de cabines telefônicas londrinas, tentando reforçar a identidade municipal do período de constituição da cidade.

Imagem ilustrativa da imagem ESPAÇO ABERTO - Direito à cidade e direito à memória: os kaingang e as raízes londrinenses
| Foto: Pedro França/Agência Senado

Nessa trilha de memórias afetivas de Londrina encontra-se uma figura particular: o pioneiro. Em praças, museu, biblioteca, ruas da cidade estão pulsantes as memórias dos pioneiros que constituem o ethos heroico da história londrinense. No campus da Universidade Estadual de Londrina, a memória heroica está materializada na Casa do Pioneiro, próxima à Capela Ecumênica, réplica da primeira Catedral. Se, como um flâneur que caminha pela cidade sem estabelecer com ela algum compromisso científico, tentássemos observar a cidade a partir de sua poesia imagética e geográfica, sentiríamos uma ausência crucial aos olhos e à memória sensível, como se nos escapasse alguma lembrança que garantisse o sentido de ser da cidade de Londrina.

Talvez, suas ruas poderiam nos indicar os caminhos de uma memória errante que, por algum motivo, não se encaixou na narrativa pioneira. No entanto, as ruas revelaram uma memória bandeirante: Raposo Tavares, Paes Leme, Borba Gato – aquele cuja estátua foi incendiada dias atrás. Ingleses, pioneiros, bandeirantes, faltam personagens.

É na Vila Casoni, onde vamos nos deparar com ruas que referenciam diferentes povos indígenas, inclusive os Guarani. Se esqueceram, porém, dos Xetá – aqueles que “desapareceram” em caminhões enviados por outra companhia colonizadora – e também dos kaingang que são os que integram as memórias faltantes da cidade, já que antes dos ingleses chegarem, as raízes kaingang já estavam profundas nesse território que se construiu Londrina.

Numa praça localizada na região norte da cidade um nome kaingang aparece na placa de entrada: Praça Ângelo Cretã. A Praça – que leva o nome do primeiro vereador indígena do país, eleito em 1976 e que se destacou como uma das maiores lideranças no Paraná – foi espaço de acampamento de famílias Kaingang em 2011. Uma Praça totalmente abandonada e arborizada que passava à condição de habitada, mas que em pouco tempo retornava à condição anterior quando as famílias foram retiradas pela prefeitura e encaminhadas para a Fazenda Refúgio, distante da cidade e de difícil permanência das famílias. O que prevaleceu foi “aqui, a cidade, não é o lugar deles”.

Recentemente, o antigo Centro Cultural Kaingang, localizado na rua Dez de Dezembro, foi tomado por um incêndio que destruiu parte das habitações improvisadas. Mesmo com a transferência do Centro Cultural para a Vila Brasil, muitas famílias permanecem nesse espaço, já o significando como espaço de sociabilidade urbana.

A antropóloga Kimiye Tommasino, constatou que, se antes os kaingang estabeleciam seus wãri (acampamento) em regiões da mata, após as reduções territoriais e degradação ambiental, eles estabelecem os wãri nas cidades. Nesse deslocamento há uma apropriação do espaço urbano que é utilizado para venda das confecções artesanais, nunca incorporando a insígnia de intrusos, pelo simples fato de não o serem.

Quando a estátua de Borba Gato foi incendiada tão logo um patrocinador anônimo financiou a restauração do bandeirante. Por aqui, enquanto as casas kaingang queimavam, surgiam os questionamentos sobre a ocupação irregular, sobre a necessidade de voltarem à aldeia ou mesmo a existência de um local de permanência localizado no bairro Cafezal. No entanto, o que dizem os kaingang sobre essas espacialidades? Qual tem sido o valor material e simbólico dedicado aos kaingang e as novas linhas de memórias que se escrevem para a cidade? Os laços de afeto estabelecidos com a cidade de Londrina se atrelam à história e presente kaingang, os reconhecendo como sujeitos de direito à cidade, direito à uma memória revisitada e, certamente direito à Terra? Precisamos, com urgência levar à sério a centralidade kaingang na memória e presente londrinense, reconhecendo que a cidade hegemônica – aquela edificada sob a memória colonial – não é cidade única.

Ana Caroline Goulart, antropóloga e professora da educação básica, mora em Jacarezinho

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