Leio, no blog Brasil 247, que uma mãe foi flagrada tentando furtar dois pacotes de macarrão instantâneo (Miojo Lámen), um refrigerante de 600 ml (Coca-Cola) e um pacote de suco em pó (Tang) de um supermercado em São Paulo. As mercadorias foram precificadas em R$21,00.

Na ocasião do flagrante ela teria assumido a tentativa do furto aos policiais e justificado sua conduta na fome. Levada à juízo em audiência de custódia teve negado o seu pleito de recomposição da liberdade, optando a magistrada (luciana menezes scorza) que presidia o ato por convolar sua prisão decorrente do flagrante em preventiva, nos moldes da pretensão esgrimida pelo ministério público (paulo henrique castex).

Imagem ilustrativa da imagem ESPAÇO ABERTO - A justiça elitista e a fome das mães
| Foto: iStock

Antes de tecer maiores considerações sobre a juíza e o promotor enfrento a náusea que a decisão estabelece, suposto que a razão deve prevalecer sempre – até porque não sei o que dói mais: a fome retornando ao convívio ou a ausência de sensibilidade e de conhecimento jurídico do ministério público e da juíza...

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Todavia e num primeiro momento, constato que gente passando fome no maior país agricultável do mundo me diminui enquanto cidadão, suposto que vergonha pouca é bobagem. Assim é que, para a elite do atraso (econômica), empatia não é senão mais um nome a se desconsiderar em caso de gravidez.

Noves fora, mães jamais deveriam passar fome! Senão pela derrota civilizatória da fome em si, pela condição da árvore em relação aos frutos, suposto que o instante em que a provedora se diz faminta perfaz o ponto sem retorno da distopia neoliberal, naquilo que estabelece a morte da galinha dos ovos de ouro da exploração do capital – se a mãe tem fome o filho tem o quê?...

A fome humilha e nega nossa pretensão de um convívio social equilibrado e racional, na medida em que a hipótese de coexistir em sociedade não passa pela tutela da fome. Ademais, é vergonhoso admitir que a fome vem obstando voos mais significativos da humanidade, naquilo que a concepção criacionista remete ao binômio imagem e semelhança com o Criador...

Passa que a ideia da Divindade não convive com o conceito famélico, uma vez que a angústia da barriga vazia nega o ideário humanista que, bem ou mal, nos trouxe até aqui...

A imagem de uma mãe com fome desconstrói o esforço racional que se aguarda do convívio contratado, naquilo que seu resultado perverso obnubila a construção de um modelo mais justo e racional de sociedade...

Assim, o que dizer da cota do ministério público pela conversão da prisão em flagrante em preventiva, notadamente em se tratando de uma tentativa de lesão patrimonial de R$21,00? Sobre a decisão (que me recuso comentar) não se deve relativizar seu caráter financeiro, uma vez que ela demarca o valor da liberdade para a magistrada...

A bem da verdade não conheço a decisão propriamente dita, mas convivo com os reflexos de sua ordenação, naquilo que a bagatela tutelada na segregação preventiva (R$21,00) é um tapa na cara de quem já passou fome. Assim é que, se você tem a felicidade de fazer três refeições ao dia, não lhe reconheço competência para julgar aquela mãe, suposto que o crime dela foi tentar furtar comida.

Que país estúpido estamos. As instâncias do judiciário não se capacitam o suficiente para perceber no outro (minoria jurisdicionada) alguém que não seja uma versão piorada de seus próprios medos e limitações.

A perversão autoritária da opção prisional cautelar, bem traduzida na limitação da lesão tentada naqueles R$21,00, não é senão um reflexo da distopia que as fake news pariram por aqui; em lugar de proteger quem tem fome, a magistrada optou por tutelar o capital...

Orgasmos múltiplos se pronunciaram pela região da Faria Lima ao tempo em que a solidão dos que têm fome atravessou o Rubicão, se deixando levar pela sorte que não lhes valeu.

Vinte e um reais depois, o que seria de se dizer que já não tenhamos todos nós pensado falar?

Posso estar diminuído enquanto cidadão, mas neste instante vou falar pelos que têm fome: não consigo imaginar (olha que sou criativo) solidão maior do que a vivida pela juíza que ordenou a medida, senão pela ausência de energia moral que sua decisão revela, pela contemporaneidade com o Pandora Papers...

O fato do ministro da economia não estar custodiado preventivamente (e entendo não haver motivo para modificar este ‘status’) e aquela mãe que tentou um furto famélico de R$21,00 se encontrar presa, diz mais sobre a solidão da juíza que ordenou a custódia do que sobre ambas as hipóteses descortinadas.

Passou que, por aqui, a banana desandou comer o macaco e a solidão é companheira de quem ainda não compreendeu que as minorias têm que ser tuteladas e não perseguidas – ainda que o cavernícola zurre em sentido oposto.

Saudade Pai, você me ensinou o caminho antes que eu imaginasse qualquer viagem.

Tristes e acovardados trópicos.

João dos Santos Gomes Filho, advogado

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