O crime do triplex no centro de Londrina ocorrido em julho de 1993 – o assassinato da empregada doméstica Cleonice de Fátima Rosa – registrou o desfecho do processo somente em outubro de 2020, 27 anos depois, quando a Justiça determinou que a ré condenada, a artista plástica Vanda Pepiliasco, voltasse à prisão após o indeferimento do último recurso.

Sob proteção de um habeas corpus, no entanto, ela segue em prisão domiciliar. O caso levanta discussões sobre temas como a Lei Penal brasileira, que garante uma série de recursos ao acusado, e o acesso a uma mesma Justiça por todos.

Gabriel Bertin, professor de direito penal e processual, considera que a demora dos processos no Brasil é um problema crônico multifatorial
Gabriel Bertin, professor de direito penal e processual, considera que a demora dos processos no Brasil é um problema crônico multifatorial | Foto: Gustavo Carneiro

O caso do homicídio de Cleonice de Fátima Rosa foi tema do segundo episódio da série de podcast "Banco dos Réus", que a Folha de Londrina lançou no dia 26 de maio, "O Crime do Triplex".

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Procurador de Justiça do Ministério Público do Paraná, Miguel Jorge Sogaiar defendeu, em entrevista à equipe de "Banco dos Réus", uma legislação mais dura para evitar recursos que dão a chance de o réu adiar o cumprimento da pena.

Gabriel Bertin, professor de direito penal e processual, considera que a demora dos processos no Brasil é um problema crônico multifatorial
Gabriel Bertin, professor de direito penal e processual, considera que a demora dos processos no Brasil é um problema crônico multifatorial | Foto: Gustavo Carneiro

“Nós temos, infelizmente, uma legislação no Brasil muito leniente, que permite muitos recursos. Se você pegar o Código de Processo Penal, o réu tem todas as oportunidades para recorrer. Tem que ter ampla defesa, mas teria que diminuir um pouco essa possibilidade de postergar o eventual cumprimento da pena. Se o réu foi condenado pelo Tribunal do Júri, o cumprimento da pena tem que ocorrer”, defende.

O procurador sustenta, no entanto, que o réu deve ter direito a um recurso. “Agora, se você pegar o Código de Processo Penal, o réu tem 4, 5, 6 oportunidades de recurso, e isso acaba levando à impunidade.”

CRÔNICO

Professor de direito penal e processual penal da PUC, Gabriel Bertin de Almeida considera que a demora dos processos no Brasil é um problema crônico multifatorial.

“Nos casos dos homicídios, a baixa qualidade das investigações policiais – embora tenha havido uma melhora nos últimos tempos – é evidente e acaba comprometendo, no longo prazo, as possibilidades de condenação, além de gerar nulidades. Por outro lado, há de fato uma grande quantidade de processos que acaba criando gargalos, congestionamento e demora”, destaca.

O docente acrescenta que a estrutura do Judiciário é lenta. “Os juízes e cartorários judiciais não são treinados para bem administrar as Varas que dirigem. Os tribunais, por sua vez, são heterogêneos quanto à agilidade. O Tribunal de Justiça do Paraná, por exemplo, tem sido bastante célere. Os recursos costumam ser julgados em aproximadamente um ano. Às vezes menos. Já os tribunais em Brasília, isto é, o STJ e o STF, que têm atuação criminal, são extremamente lentos.”

Entre as medidas para reduzir a duração dos processos, o docente defende o aumento do número de varas do Tribunal do Júri no primeiro grau e a especialização de Câmaras em tribunais.

“Alguns defendem um enxugamento das possibilidades de recurso como algo que diminuiria o tempo dos processos. Não me parece ser algo efetivo. A sensação de impunidade decorrente da demora pode ser abrandada mais eficientemente por mecanismos de gestão simples aplicáveis pelo próprio Judiciário”, sustenta o docente.

O advogado criminalista João dos Santos Gomes Filho entende que o longo tempo do processo não pode ser entendido como algo em favor do réu.

“Todo esse tempo que passou retratou as disputas que se travaram no processo. Se de um lado a sociedade espera uma resposta concreta, ou seja, cadeia, do outro lado a sociedade não pode se contentar com menos do que o devido processo. Então cada processo tem o seu tempo. Esse anseio por mais agilidade é mais fruto do imaginário, do inconsciente coletivo”, destaca.

Sobre o longo curso do processo sobre o crime do triplex (a última movimentação ocorreu em 30 de outubro de 2020, quando a sentença se tornou definitiva e condenou a artista plástica), o criminalista entende não ser necessário mudar a lei.

“A Constituição fala com todas as letras em trânsito em julgado [julgamento definitivo, quando não cabe mais recurso] para o início da pretensão executória da pena. Não acho que devamos mudar. Uma sociedade tem que se construir sob balizas sólidas, e se de tempo em tempo os costumes mudam e anseiam-se respostas punitivas, não podemos fazer com que isso altere a lei. Penso que o momento da pretensão da execução da pena efetivamente é o trânsito em julgado.”

CONDIÇÕES

Em entrevista à equipe do "Banco dos Réus", o irmão de Cleonice chegou a clamar por justiça, considerando que se o crime fosse cometido pelo filho da empregada contra a patroa, a pena seria muito mais rigorosa.

“Quem tem condições de contratar um bom advogado tem mais chance de se livrar daquilo que não quer que aconteça com ele. O que o dinheiro paga no caso, via de regra, é a contratação de um grande advogado e ele costuma fazer muita diferença. Infelizmente quem não tem poder aquisitivo padece disso”, analisa o advogado criminalista.

Sobre essa desigualdade que afetaria o banco dos réus, o advogado considera que a igualdade passa pelo fim das desigualdades sociais endêmicas no Brasil. “O banco dos réus é um reflexo da nossa sociedade, traduz esse reflexo.”

O docente da PUC Gabriel Bertin de Almeida considera o sistema judiciário brasileiro essencialmente injusto. Ele entende que a polícia e o Judiciário têm cumprido a função de investigar e punir ladrões e traficantes com certa eficiência, mas quando se trata de punir empresários, políticos e pessoas com elevada capacidade de defesa, as coisas não funcionam da mesma forma.

“Há até momentos de mais democratização, mas que não tendem a durar. A explicação dessa disparidade merece um tratado sociológico. Mas talvez a maneira mais simples de explicá-la seja lembrar que juízes e promotores, assim como os advogados, são categorias profundamente elitistas. Não é de se estranhar, nesse contexto, que a clientela mais atingida pelo direito penal seja outra, bem menos favorecida. Negar esse estado de coisas é tão despropositado quanto negar a eficiência das vacinas, ou das urnas eletrônicas. É preciso reconhecer essa mazela e agir, no longo prazo.”

A SÉRIE

Imagem ilustrativa da imagem Podcast "O Crime do Triplex" levanta discussão sobre a Lei Penal
| Foto: Rafael Pereira Costa

Produzida pela FOLHA, a série de podcasts "Banco dos Réus" é composta por documentários que vêm trazendo aspectos de cinco crimes que deixaram cicatrizes profundas na memória de toda a cidade.

O advogado criminalista João dos Santos Gomes Filho destaca a importância da produção jornalística por convidar à reflexão sobre os temas.

“Precisamos de séries como esta, com os holofotes totalmente apontados para a desigualdade profunda e a injustiça tremenda da nossa sociedade. Não somos uma sociedade punitivista, somos uma sociedade profundamente desigual, e essa desigualdade gera consequências de toda natureza. A criminalização dos mais jovens que moram na periferia é uma das consequências. A cooptação desses não albergados no mercado de trabalho pelo crime organizado é outra consequência”, conclui.

Gabriel Bertin de Almeida, professor de direito penal e processual penal da PUC, ouviu os dois primeiros episódios da série e considera a cobertura de casos locais algo muito interessante.

“É sem dúvida um produto de alto nível. Tivemos também casos de corrupção célebres, ainda mais complexos, pelo número de pessoas envolvidas, que também merecem uma série de episódios (AMA/Comurb, Publicano, ZR-3 e outros)”, sugere.

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