A 50km de Londrina, a região dos assentamentos Eli Vive I e II reúne cerca de 3 mil pessoas que cultivam, entre outras coisas, hortaliças, frutas e plantas medicinais. Tudo poderia ser encontrado nas feiras e sacolas de produção orgânica promovidas pelos produtores locais. Mas a chegada do novo coronavírus ao Brasil, no ano passado, impediu realização de eventos com aglomeração, tais como as feiras.

“E agora? O que a gente faz?” - questionou Jovana Cestille, assentada no Eli Vive I e responsável pela comunicação do assentamento. O que fariam as mais de 500 famílias de companheiros do assentamento se não poderiam mais montar a feira?

Jovana Cestille moradora do Eli Vive I: comércio eletrônico fez as vendas crescerem 50%
Jovana Cestille moradora do Eli Vive I: comércio eletrônico fez as vendas crescerem 50% | Foto: Gustavo Carneiro

A 20 quilômetros dali, no Eli Vive II, o desafio era o mesmo. As mulheres desse assentamento participam do projeto Sacolas Camponesas, com o auxílio da UEL (Universidade Estadual de Londrina) para realizar vendas de produtos orgânicos sob encomenda, em sacolas, até então, semanais. A assentada e técnica em agroecologia Aparecida Costa Ferrer, mais conhecida como Flor, coordena o assentamento e conta que o projeto preparou as mulheres para que dessem conta de se integrar ao meio online, pois estavam “ensaiando, antes da pandemia, para ter esse recurso e aumentar as vendas”, relata Flor. Ainda que, naquela época, não imaginassem que o vírus traria tantos desafios, no final das contas, ela observa que para o projeto “foi o que salvou”.

Não à toa, o comércio eletrônico foi um dos setores que mais cresceu na pandemia. Segundo levantamento da ABComm (Associação Brasileira de Comércio Eletrônico), em parceria com a Neotrust, o crescimento nas vendas foi de 68% na comparação com 2019. O estudo aponta que 150 mil lojas passaram a vender, também, por meio das plataformas digitais. Nesse sentido, a fim de evitar a contaminação tanto dos assentados quanto de seus clientes, foi preciso renovar o antigo Feirão da Resistência com a ajuda da tecnologia, dando origem ao Feirão Virtual. A partir daí, as encomendas puderam ser feitas pela internet e retiradas sem a necessidade de formar aglomerações.

Os resultados dessas alternativas foram distintos para as produtoras. As vendas do feirão nesse novo modelo cresceram em cerca de 50%, chegando a esgotar alguns produtos no Eli Vive I. Cestille supõe que o aumento se deve a um conjunto de fatores: pelo isolamento ter obrigado muitas famílias a terem suas refeições em casa, em vez de restaurantes; uma maior preocupação das pessoas em manter a saúde, a fim de se proteger do novo coronavírus, fez com que procurassem por produtos orgânicos e naturais; houve também a presença mais intensa do grupo nas redes sociais, o que fez com que o Eli Vive fosse mais conhecido pela população.

Em contrapartida, Flor observou queda em suas vendas na mesma proporção. Ela conta que quando ia entregar suas sacolas nas feiras, as pessoas passavam e, ocasionalmente, poderiam se interessar pelo que estava exposto e comprar o produto na hora. Com a pandemia, essas feiras deixaram de acontecer. As produtoras recorreram ao comércio eletrônico como uma alternativa eficaz, mas nem sempre tão vantajosa, já que o sinal de internet na zona rural, onde elas moram, é ruim.

Parte da colheita é destinada ao consumo interno

É necessária a garantia de que haja alimento para suprir todas as necessidades dos assentados. Parte da colheita no Eli Vive é destinada ao consumo interno da comunidade. Essa produção tem que ser suficiente para que haja a soberania alimentar, ou seja, o direito da comunidade de definir suas próprias estratégias de produção e a alimentação do grupo como um todo.

As mulheres do Eli Vive aprenderam novas técnicas de cultivo da terra e dos alimentos, visando uma produção agroecológica
As mulheres do Eli Vive aprenderam novas técnicas de cultivo da terra e dos alimentos, visando uma produção agroecológica | Foto: Gustavo Carneiro

Outra parcela de produtos é vendida para gerar renda, a qual é usada para investimento e construção de uma vida digna para as famílias. Nessa questão, as Sacolas Camponesas têm se mostrado uma ferramenta valiosa, contando com a venda de 100 sacolas semanalmente. Foi devido a elas que foi possível a compra de uma Kombi para realizar as entregas.

O Eli Vive também se compromete a realizar doações de alimentos a comunidades carentes. No dia 17 de abril, por exemplo, foi realizada a doação de dez toneladas de comida produzida por assentados para alimentar a população que vêm sofrendo com pobreza e fome durante a pandemia. A ação aconteceu em lembrança aos 25 anos do Massacre de Eldorado do Carajás, em que 19 sem-terras foram mortos.

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Tudo isso precisa ser economicamente viável para os produtores. Com a chegada da pandemia, parte da fonte de recursos dos assentados se desfez. Cestille e Flor lembram da incerteza da continuidade do projeto federal PNAE (Programa Nacional de Alimentação Escolar), o qual garantia parte do sustento das camponesas pela compra de comida para merendas da cooperativa dos assentados, a Copacom (Cooperativa Agroindustrial de Produção e Comercialização Conquista). A comunidade ainda ficou sem acesso ao crédito anteriormente fornecido pelo Pronaf (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar), implicando que uma maior parcela da renda dos assentados fosse de origem de venda.

Por isso, a compra de produtos provenientes de assentamentos, principalmente durante a pandemia, é vista como uma ação solidária. Mas essa relação tem mão dupla: ao passo em que os alimentos adquiridos permitem a manutenção da comunidade, eles também são entregues ao consumidor por um preço mais baixo do que os orgânicos semelhantes vendidos em supermercados. Isso expande a relação direta entre produtor e consumidor, contribuindo para que o segundo conheça melhor aquilo que vai consumir.

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Ingresso ao mundo virtual proporcionou aprendizado e autonomia às produtoras

Para que essa virada tecnológica nos assentamentos Eli Vive fosse possível, as próprias assentadas precisaram passar por um processo de aprendizado e conhecimento do mundo virtual, tão diverso do rural. Além de se familiarizarem com as redes sociais e técnicas de fotografia para a divulgação, também entraram em contato com planilhas Excel e produção de formulários. O desenvolvimento dessas habilidades proporcionou maior autossuficiência no planejamento e organização financeira para essas mulheres, metas anteriormente já previstas pelos grupos.

Plantação de abacates: a compra de produtos provenientes de assentamentos, principalmente durante a pandemia, é vista como uma ação solidária
Plantação de abacates: a compra de produtos provenientes de assentamentos, principalmente durante a pandemia, é vista como uma ação solidária | Foto: Gustavo Carneiro

O projeto Sacolas Camponesas, por exemplo, visa melhorar as condições de vida das comunidades por meio do incentivo das mulheres a participarem de um sistema agroecológico. Como explica o professor do curso de geografia da UEL, Nilson Cesar Fraga, coordenador do projeto desde 2019, “ao incentivar a produção de alimentos orgânicos, se rompe com a estrutura patriarcal no campo”, e isso pode ser explicado por meio de três etapas.

Primeiro, a mulher está inserida em uma estrutura familiar no campo em que a ela não tem papel em todos os processos da produção, e o sustento financeiro está ligado à figura masculina. Assim, a chegada da mulher ao posto de provedora é uma grande conquista. “Para a mulher em si já não é fácil, imagina para nós, camponesas” - desabafa Flor.

Ao serem apresentadas a esse projeto, elas aprendem novas técnicas de cultivo da terra e dos alimentos, visando uma produção agroecológica, setor em constante crescimento na procura dos consumidores. Ao venderem esses produtos, elas são introduzidas aos meios tecnológicos, que se dão pelas vendas online, pelo uso das máquinas de cartão para o pagamento, e pela confecção dos seus próprios cartazes de divulgação nas redes sociais. Com esse conjunto de etapas, se chega àquilo que antes era o pretendido, a emancipação dessas mulheres.

Levar o conhecimento científico para as mulheres do campo é essencial, porque, como revela o professor Fraga, “ainda se convive com a cultura patriarcal dentro do próprio movimento do MST e, principalmente, no campo. Fazer com que as mulheres produzissem renda e riqueza, agregando à produção do lote do assentamento, é fundamental para diminuir essa relação do patriarcado no campo e no meio rural”. E essa autonomia também é percebida pelas próprias camponesas, que incentivam umas às outras. Segundo Flor, essa autonomia proporcionou “visibilidade ao assentamento, mostrando para as outras companheiras que é possível fazer isso nos seus lotes”.

Antes do projeto, o que era produzido era exclusivo para o seu próprio sustento, porque a porção de terra em que elas estavam era relativamente pequena para elevar a produção a nível de comercialização. Nessa época, Flor conta que as mulheres já formavam uma organização para produzir artesanatos e obter uma renda extra. Quando elas foram assentadas, e quando o projeto da UEL chegou até elas, resolveu-se o problema do tamanho da terra e do conhecimento das técnicas para a comercialização, “estudando, você consegue entender o processo e colocar em prática”, relata com orgulho.

É nessa ocasião em que se reafirma a função social das universidades, pois “ela constrói ciência e tecnologia para revolucionar a vida das pessoas”, enfatiza o professor de geografia da UEL. Ele ainda destaca que o papel da universidade não é apenas ensino, mas também pesquisa e extensão à comunidade, como o projeto das Sacolas Camponesas.

Flor se alegra ao lembrar que agora, além de produtoras, mulheres ocupam cargos de financeiras, motoristas habilitadas, secretárias, coordenadoras, tesoureiras, presidentes de associação dentro do assentamento. Mas a presença ativa da mulher no campo é um benefício para todos. Um dos maiores êxitos elencados por Flor é a união familiar desenvolvida, pois agora todos os membros fazem parte do processo de produção e venda. “É uma conquista para nossa autoestima enquanto companheiras, enquanto mulheres” - completa

Cestille percebe que, em questões ambientais, “são as mulheres que acabam puxando a importância dessa discussão”. São práticas que não agridem o ambiente e visam a saúde do consumidor, mas que não são de fácil aplicação, pois “ter uma produção agroecológica não é simplesmente não usar o químico, mas é aprender quais manejos você vai fazer para que o próprio sistema entre em equilíbrio”, explica.

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O que é agroecologia?

Agroecologia é o estudo da agricultura em uma perspectiva ecológica. “É a relação dos seres vivos em um agroecossistema” – define o professor de agronomia da UEL e pesquisador da área de agroecologia, Maurício Ursi Ventura. Ele também faz parte do programa Paraná Mais Orgânico, uma parceria entre o Instituto de Desenvolvimento Rural do Paraná-Iapar-Emater (IDR-Paraná), vinculado à Secretaria de Estado da Agricultura e do Abastecimento, que visa a inclusão dos agricultores familiares nos processos de comercialização da produção orgânica.

Imagem ilustrativa da imagem Mulheres camponesas passam por revolução tecnológica para garantir renda na pandemia

“A agroecologia passou a ser não só uma ciência, mas também um movimento, em que as pessoas buscam estabelecer uma nova agricultura e construir relações”, explica ele. Assim, a agroecologia também aborda as questões sociais, ou seja, a participação dos pequenos camponeses na produção do campo, os seus direitos e, como abordado pelas camponesas, a participação das mulheres nesse meio. A produção de alimentos orgânicos (sem agroquímicos) em um sistema agroflorestal, como a realizada no Eli Vive, visa a agricultura regenerativa e a recuperação do solo e, portanto, está dentro de uma lógica agroecológica. Essa técnica consiste, entre outros fatores, em cultivar mais de uma cultura no mesmo espaço, em uma simulação de floresta, e colher sem agredir o meio-ambiente.

*Supervisão da editora Patrícia Maria Alves.