Volta e meia me pego a lembrar de coisas que marcaram minha infância. Meu primeiro animal de estimação foi uma cachorrinha vira-latas branca, chamada Suzi, com manchas pretas e marrons. Foi um animal que me proporcionou momentos e histórias bem curiosas. E este causo é de uma situação dessas.

Imagem ilustrativa da imagem DEDO DE PROSA| Tchau burrinho, até logo
| Foto: Marco Jacobsen

Conforme a Suzi ia envelhecendo, começaram a surgir problemas complicados de pele, com queda de pelo e o aparecimento de feridas e crostas. Lá nos anos 90 não era fácil encontrar um veterinário em qualquer canto da cidade, como nos dias de hoje, de modo que a esperança das pessoas que possuíam animais de estimação era o hospital veterinário da UEL.

Começamos, meu pai e eu, a levá-la para consultas na clínica do hospital e, numa dessas idas matinais, a fila costumeira de espera por atendimento se arrastava mais do que o normal e meu pai foi para o trabalho, combinando de me buscar no horário de almoço. Não existia celular, o jeito de passar o tempo era conversando, e a gente conversava com outras pessoas, sobre seu animal de estimação.

Nesta tarde, em que eu não conversava com ninguém, vi uma das coisas mais tristes que podemos presenciar quando se trata de animais que convivem com o homem: Enquanto aguardava a tediosa fila andar uns poucos centímetros a cada meia hora, vi chegar uma camioneta trazendo na carroceria um burrinho atropelado numa rodovia qualquer. Não dei atenção a essa informação, pois ela parecia irrelevante. E era. O olhar do pobre animal era de partir o coração de qualquer um. Ele estava em agonia, enquanto arfava, fios de lágrimas escorriam pela sua pelagem, banhando o piso de madeira da carroceria.

Os homens que recolheram o animal da estrada e o trouxeram ao hospital tinham no olhar a expressão do inevitável. Eu já tinha ouvido falar em sacrifício de animais com o fim de abreviar sofrimento e também já tive contato com muito animal morto, mas, naquele momento específico, eu senti um peso no coração por entender que o trabalho que esses homens tiveram foi simplesmente para levar o pobre burro a um local que realizasse eutanásia.

“As patas traseiras tudo quebrada”, dizia um deles, acho que era o motorista. Eu via sangue nas patas e no dorso do burrinho sobre a caçamba. A pancada o havia machucado muito, de fato. E sua agonia não acabaria tão cedo, pois eles esperaram e esperaram, até que saiu da clínica uma médica veterinária para analisar o burrinho. Ela examinou a barriga, o pescoço, as patas traseiras, as da frente… e, por fim, murmurou ao motorista: “É, não tem o que fazer”. E pediu a ele que o levasse a um outro setor do hospital, com acesso a animais de grande porte. Enquanto eu ouvia o diálogo, olhando o pobre burrinho, percebi que ele, respirando naquela extrema dificuldade, olhava de volta para mim, como a suplicar ajuda ou alento. E eu só podia sentir pena e dor no coração, por ele.

Quando a camioneta partiu, foi minha vez de murmurar: “tchau burrinho, até logo”. Agarrei minha cachorrinha no colo, como se fosse eu a precisar de alento ou consolo pelo destino do burrinho que acabara de conhecer e que havia cruzado o olhar triste com o meu.

Jamais esquecerei o burrinho que precisou ser sacrificado por um descuido, talvez, de seu dono, ou outra circunstância qualquer. Essa imagem dele partindo na camioneta vai ficar comigo para o resto da vida. Era um animal tão bonito, com um pelo cor de chocolate lustroso e um leve prenúncio de grisalho no focinho e nas pontas das orelhas. Tchau burrinho, até logo.

L. R. Silva, é escritor. Autor do e-book “Esta é a guerra do mundo”, disponível na Amazon.

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