Imagem ilustrativa da imagem DEDO DE PROSA| Figurinhas e figurões
| Foto: Marco Jacobsen

Eu tinha 10 anos e o meu mundo girava em torno da Copa do Mundo de Futebol. Havia comprado um álbum de figurinhas com desenhos dos estádios do torneio, mascotes e cromos com jogadores. Foi uma jogada genial da marca do chiclete Ping Pong, que vendia a goma de mascar com as figurinhas. Além do álbum quase completo, a promoção acabou rendendo também muito trabalho ao dentista da família.

Na escola, cantávamos o hino nacional em filas organizadas diante da bandeira do Brasil. Na hora do recreio, trocávamos as figurinhas repetidas e jogávamos "bafo". Nas casas de cada amigo, assistíamos aos jogos com devoção e, depois das partidas, vestíamos nossos “kichutes” e seguíamos em direção ao campinho para narrar nossos próprios gols. “Goooooooooooooool do Zico!”, gritavam incessantemente as vozes esganiçadas de crianças que assumiam a identidade do craque.

Em 1982, eu aprendi muita coisa. O presidente da época era o general João Batista Figueiredo e foi naquele ano que eu ouvi pela primeira vez a expressão "crise econômica". Aprendi também o que era inflação e descobri que o país estava atolado em dívidas feitas nas gestões anteriores, o que levou o governo a recorrer ao Fundo Monetário Internacional. Sim, naquele ano eu também descobri o FMI.

Foi na época também que entendi o que era uma carta bomba. E, confesso, foi muito difícil de compreender. Como uma bomba inteira caberia em um envelope? Imaginei que a secretária do presidente da OAB, dona Lyda, que perdera a vida ao abrir uma correspondência dessas, também não entendia de cartas bombas. Tem coisas que são muito difíceis de compreender.

Por conta da minha ingenuidade, com apenas uma década de vida, cheguei a ficar com pena do Figueiredo. Tinha muita gente pedindo por Democracia, havia também ataques terroristas organizados por gente do governo, greves por todo o país e até os seus correligionários tramavam contra o presidente.

O fato de Figueiredo gostar de cavalos fazia com que eu simpatizasse com ele. “Um homem que gosta de animais não poderia ser assim tão ruim, mesmo que não goste muito de gente!”, defendi, certa vez, na hora do almoço (fazendo meu pai se engasgar com a comida).

Mas conhecer essas coisas tinham uma importância secundária, pois, a cada vitória do Brasil no futebol, minha euforia aumentava. O primeiro jogo foi sensacional. Acho que até o presidente vibrou quando vencemos os comunistas da União Soviética por 2 a 1. Na partida, saímos perdendo. Nosso goleiro, o Waldir Peres, levou um frango no primeiro tempo. Mas, depois do intervalo, viramos o jogo com gols de Sócrates e Éder. Que felicidade! Uma vitória na estreia.

A seleção venceu os dois jogos seguintes contra Escócia e Nova Zelândia, com gols de tirar o fôlego, causando euforia em crianças e adultos. Na fase seguinte, tínhamos a Argentina pela frente. Vencemos los hermanos por 3 a 1. Foi quando conheci o Maradona, que foi expulso naquela partida.

O jogo seguinte foi contra a Itália, disputa que assistimos na fazenda Santo Antônio, que ficava próxima a uma cidadezinha chamada Lidianópolis, na região de Ivaiporã. A propriedade era administrada pelo meu avô paterno. Passei boa parte da minha infância naquela fazenda. Vivia sujo de terra vermelha e era amigo de todos os cães, galinhas e patos.

Às vezes, escutava meu pai discutir política com meu avô. Falavam coisas sobre bombas, comunismo e democracia. Coisas muito difíceis de entender. Minha mãe sempre ficava apreensiva com as discussões acaloradas e insufladas por opiniões antagônicas.

Mas, naquela semana, meu coração estava apertado. Não pela discussão dos mais velhos. Estava ansioso para rever a seleção. Estava certo da vitória e ávido para sentir aquela incrível sensação: a de ser um vencedor. O prazer de vencer com os11 jogadores, junto com um país inteiro. Os gols do Zico eram nossos gols e isso era maravilhoso.

A família se reuniu na frente de um televisor em preto e branco. E isso não importava, porque conhecíamos nossas cores e sabíamos quem era quem. Nossa torcida era fervorosa e até os cachorros estavam assistindo ao jogo. Mas, fracassamos miseravelmente.

Não podia acreditar. Havíamos sido derrotados e eliminados da competição. Foi quando, pela primeira vez, descobri uma dor diferente. Não era física, mas doía como se fosse. Chorei muito e dormi muito mal naquela noite. Acordei no dia seguinte e a dor ainda estava lá, doendo de forma incessante, o que persistiu por semanas.

Quando voltei para Curitiba, meus amigos me culparam pela derrota da seleção, usando o argumento de que eu quebrei a tradição de assistir aos jogos juntos, levando assim azar ao time. Resolvemos fazer uma “cápsula do tempo” usando uma lata de leite em pó para abrigar figurinhas, recortes de jornais, alguns centavos de Cruzeiro e uma bandeira do Brasil desenhada em uma cartolina. Enterramos a lata na base de uma das traves do nosso campinho de futebol. Como em um cortejo fúnebre, nos despedimos daqueles objetos e combinamos que voltaríamos no ano 2000 para reaver as lembranças.

Porém, dois anos depois, não resistimos à tentação de ver como estava a nossa cápsula e a desenterramos. A lata enferrujara guardava um conteúdo dissolvido quase por completo pela umidade, deixando, como sobra, apenas as moedas.

Assim como a nossa lata corroída, o governo do general Figueiredo dava seus últimos suspiros. Foi quando eu descobri a palavra desemprego. Quer dizer, o meu pai descobriu. Foram anos difíceis para a Seleção Brasileira, para o Figueiredo, para milhares de brasileiros, mas, como uma criança feliz, eu nem percebi.