O livro “Segurança Alimentar e Nutricional: O Papel da Ciência Brasileira no Combate à Fome”, organizado por Mariangela Hungria, integrante da diretoria da ABC (Academia Brasileira de Ciências) e pesquisadora da Embrapa Soja, apresenta uma profunda discussão sobre o quadro da fome no Brasil e como a ciência pode contribuir para a garantia da segurança alimentar. A obra gratuita, que traz o trabalho de 41 autores de 23 instituições de pesquisa, foi lançada nesta quinta-feira (14), na sede da ABC, no Rio de Janeiro.

Esse é um cenário complexo porque, ao mesmo tempo que o protagonismo brasileiro na produção de alimentos está consolidada - sendo o quarto maior produtor mundial -, a massa de famintos no país ainda é gigantesca, com mais de 30 milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar grave.

Imagem ilustrativa da imagem Ciência tem papel central no combate à insegurança alimentar, diz publicação
| Foto: ANeto/Arquivo Embrapa Soja

Em entrevista à FOLHA, Hungria aponta que o livro chega à conclusão de que a fome tem múltiplas causas e que é necessário um trabalho multidisciplinar para tentar resolver o problema. “E a ciência brasileira tem capacidade, nos seus diversos setores, de agir em conjunto para resolver esse problema”, explica.

Tratando dessa ação conjunta, a pesquisadora cita, como exemplo, a economia. Se um brasileiro vive em situação de insuficiência alimentar grave, sem a garantia de nenhuma refeição no dia, o apoio governamental é indispensável.

“Elas não têm condições, não sabendo se vai ter um pão, de ir trabalhar, arrumar um emprego para comprar esse pão”, pontuando que cabe à ciência identificar onde estão essas pessoas, as suas particularidades e apontar, com precisão, como essas políticas governamentais devem ser desenvolvidas. “Caso contrário, se você não endereçar adequadamente esses valores e para onde eles vão, as políticas podem ser totalmente equivocadas.”

Confira a entrevista completa com a pesquisadora da Embrapa e integrante da diretoria da ABC, Mariangela Hungria:

Quando falamos de segurança alimentar, quais são os impactos das mudanças climáticas na produção de alimentos?

A mudança climática, os problemas relacionados a ela, são abordados em vários capítulos. Posso falar que praticamente todos os capítulos, de um modo ou de outro, apontam que isso, sem dúvida, vai ser um dos maiores, ou maior desafio nos próximos anos. Em um capítulo de pesquisa para aumentar a produção, é mostrado que [a mudança climática] é o nosso maior desafio, então precisamos ter investimento em pesquisa para solucionar isso. São variedades mais resistentes, diferentes manejos de culturas, o próprio levantamento de dados precisos podermos se prevenir contra essas mudanças climáticas. E outro capítulo muito interessante foi do próprio setor privado, que mostra a preocupação do setor produtivo com as mudanças climáticas, reconhecendo que esse é o maior problema. Ao contrário de muitos posicionamentos anteriores, de que o setor produtivo era capaz e se sentia capaz de resolver o problema sozinho, desta vez não. Ele reconhece que as mudanças climáticas são um problema de todos e que só pode ser resolvido com o apoio de todos: setor privado, público e terceiro setor.


icon-aspas "(...) temos que dar alimentos para as pessoas, [mas] não é só quantitativamente. Temos que, com muita educação, criar até uma nova geração, uma geração que vai saber comer. O brasileiro, de um modo geral, come poucas frutas, verduras e legumes"

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| Foto: ANeto/Arquivo Embrapa Soja

Qual é o papel do desenvolvimento científico para garantir uma produção de alimentos alinhada a esse contexto, utilizando menos recursos naturais?

O papel do desenvolvimento científico é salientado com muita propriedade em três dos capítulos, mostrando que realmente sem a ciência, sem a pesquisa, nós não vamos conseguir solucionar esse nosso problema, por exemplo, das mudanças climáticas de produção sob esse novo panorama climático que a gente tem e também, principalmente, nessa busca que nós estamos pela agricultura regenerativa. Por quê? Porque os nossos recursos naturais são finitos, estão cada vez mais limitados. Então, a meta da nossa agricultura é produzir cada vez mais com cada vez menos água, menos terra, menos dispêndio de energia e isso é apontado como uma prioridade que a ciência e a pesquisa podem ajudar a resolver.

O Brasil hoje é um dos grandes produtores de alimento do mundo, mas ainda possui uma massa gigantesca de pessoas em insegurança alimentar. No seu ponto de vista, a que se deve isso e quais podem ser os caminhos para solucionar o problema?

Passa por várias etapas. Por exemplo, a produção dos alimentos. Depois, não é só produzir, temos que dar alimentos para as pessoas, [mas] não é só quantitativamente. Temos que, com muita educação, criar até uma nova geração, uma geração que vai saber comer. O brasileiro, de um modo geral, come poucas frutas, verduras e legumes, e ainda tem uma grande injustiça social nisso, porque a situação nutricionalmente desfavorável é ainda pior nas classes mais baixas. Precisamos de educação, acesso aos alimentos para ter isso, e vai até a comunicação, porque nós temos que aprender como é que nós vamos comunicar os resultados corretos da pesquisa para a sociedade, para que ela acredite no que é correto e não em fake news, e possa então ser orientada. Até para solucionar o problema da fome, uma coisa muito interessante levantada no livro é o papel da ciência, mas a gente até fala que precisamos inovar na própria ciência. Vai ter que ser uma ciência diferente daqui para a frente, porque para resolver o problema da fome eu não posso ficar no meu laboratório, no meu campo experimental ou lá no meu escritório fazendo cálculos. Precisa ser uma ciência cidadã, a sociedade precisa ajudar a ciência a reconhecer seus problemas e encontrar soluções.

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O papel das mulheres na segurança alimentar é um ponto importante na obra, já que elas representam quase a metade do total de produtores da agricultura familiar. Como essas trabalhadoras rurais podem superar - entre outras dificuldades - a falta de acesso à terra e a desigualdade de gênero?

Eu sempre brinco que o meu capítulo favorito é o capítulo das mulheres. Sou mulher, sempre cuidei da minha família, tenho horta, plantas medicinais, e achava que conhecia o papel das mulheres. E no capítulo das mulheres eu vi, eu aprendi muito e me emocionei mesmo, porque eu nunca tinha tido essa dimensão de como nós mulheres somos fundamentais na segurança alimentar e nutricional. Se não fôssemos nós mulheres, essa situação de fome no Brasil seria muito maior. Nós guardamos as sementes, nós guardamos receitas, nós guardamos instruções que nós recebemos das nossas mães, das nossas avós, sobre quais alimentos são bons, quais não são, como devemos cultivar nossas hortas. O interessante é que mesmo mulheres que tiveram acesso mínimo à educação, têm uma noção de logística, de quantidade, de qualidade dos alimentos. As propostas nesse capítulo são disso de valorização do papel da mulher, de acesso ao crédito e à terra por mulheres, cozinhas e creches comunitárias para que elas possam trabalhar, direitos trabalhistas sobre isso que elas fazem, que não é valorizado na sociedade e que não traz uma segurança para o futuro dessa mulher. Então esses estudos sobre o papel da mulher e as propostas da ciência sobre como valorizar isso foram particularmente muito significativas para mim.

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| Foto: Reprodução