Jogado no chão, com o pescoço preso sob o joelho de um policial branco, o segurança americano George Floyd, homem negro de 46 anos, não conseguia respirar. Foram oito minutos sendo sufocado até a morte, em uma cena filmada por um telefone celular. Outros três policiais presenciaram a cena sem intervir. O caso, ocorrido em Minneapolis, no estado de Minnesota, chocou e iniciou uma série de revoltas contra a brutalidade policial e o racismo estrutural e institucional. A onda se espalhou. Além dos Estados Unidos, Alemanha, Canadá, França, Austrália e Brasil tiveram protestos nos últimos dias.

Manifestantes fazem momento de silêncio por George Floyd em passeata nos EUA
Manifestantes fazem momento de silêncio por George Floyd em passeata nos EUA | Foto: Joseph Prezioso / AFP

Por aqui, as recentes mortes do adolescente João Pedro Mattos, de 14 anos, em São Gonçalo (RJ), alvo de tiros dentro da própria casa, durante uma operação das polícias Civil e Federal, e do menino Miguel Otávio Santana, de cinco anos, que caiu do nono andar do prédio onde sua sua mãe trabalhava, em Recife (PE), também geraram revolta. O movimento “Black Lives Matter” — “Vidas Negras Importam”, ganhou as ruas de várias cidades e dominou a discussão na internet, escancarando mais uma vez o óbvio aos nossos olhos: é preciso dar um basta à desigualdade racial.

“Claro que o que acontece lá fora tem que gerar nossa indignação, mas é importantíssimo a gente refletir e parar de naturalizar por aqui os assassinatos de jovens negros. A cada 23 minutos, um jovem negro é assassinado no Brasil. A gente precisa pensar esses desafios dentro do nosso país, sobretudo num momento de muita repressão aos movimentos sociais e de corte de políticas públicas para populações negras”, afirmou a escritora e filósofa Djamila Ribeiro, mestre em Filosofia Política pela Unifesp, autora de “Pequeno Manual Antirracista” e uma das vozes mais influentes do movimento pelos direitos das mulheres negras no Brasil.

Em anos anteriores, situações de violência policial e outros flagrantes de preconceito racial também ocuparam as manchetes dos jornais. Após dias de ebulição, o tema parece ter saído de cena, sem a clareza de mudanças constantes e estruturais. Como garantir que os lamentáveis episódios das últimas semanas não sejam esquecidos? Para Marcelo Barbosa, estudante de Direito e militante de movimentos de combate ao racismo, é fundamental haver atitudes concretas. "É preciso uma desconstrução constante e enérgica das chamadas 'pequenas situações' racistas, que sustentam o preconceito e quase sempre são ignoradas pela sociedade. Quantos cidadãos se posicionam quando um negro sofre um ataque racista? Não pode ser apenas quando a violência é filmada, mas em todos os outros momentos", avalia.

Visitantes no Memorial por Geoge Floyd localizado no seu antigo bairro em Houston Texas, EUA. Floyd, suspeito de passar nota falsa, foi morto por policiais em Minneapolis em 25 de maio
Visitantes no Memorial por Geoge Floyd localizado no seu antigo bairro em Houston Texas, EUA. Floyd, suspeito de passar nota falsa, foi morto por policiais em Minneapolis em 25 de maio | Foto: Johannes Eisele / AFP

Djamila aponta também a importância de destacar e mostrar a luta constante dos movimentos. “No Brasil, a gente às vezes é privado da nossa história de resistência. Nos contam que os negros foram escravizados e ponto, não falam que existiram resistências. É muito importante saber que os quilombos foram organizações políticas de resistência e até hoje temos comunidades descendentes de quilombos, os quilombolas, ainda lutando para ter direito à titulação das suas terras. A gente tem movimento negro, frente negra brasileira, movimento negro que lutou por ações afirmativas que foram adotadas no Brasil, como a lei federal de cotas, em 2012. Essas conquistas são reivindicações históricas dos movimentos negros. A própria questão de hoje ter aumentando o número de pessoas que se declaram negras no Brasil é luta dos movimentos negros”, enfatiza. A advogada Priscila Matos, que desde os tempos de faculdade milita pela causa negra, concorda. “É uma luta que nem sempre ganha destaque, infelizmente, como tantas no país. A sociedade se engaja em momentos como o que estamos vivendo, mas desconhece o que é feito diariamente. Ela precisa ver e também participar disso como um todo, permanentemente”, observa.

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Djamila Ribeiro -

Resgate histórico

Para especialistas, combate ao racismo deve passar pela compreensão da origem dos problemas

Brasileiros participam de protesto contra racismo e em solidariedade ao movimento "Black Lives Matter" na Esplanada dos Ministérios em 7 de junho
Brasileiros participam de protesto contra racismo e em solidariedade ao movimento "Black Lives Matter" na Esplanada dos Ministérios em 7 de junho | Foto: Sergio Lima/AFP

No caminho para que soluções estruturais de combate ao racismo sejam estabelecidas, a escritora e filósofa Djamila Ribeiro aponta um fator essencial: o entendimento do problema como sistema de opressão, gerado pela falta de conhecimento da nossa história como povo. "Muitos brasileiros desconhecem que fomos o último dos países das Américas a abolir a escravidão. Desconhecem o impacto disso na construção da nossa sociedade, os fatos históricos que formaram essas desigualdades. A Constituição do Império, de 1824, dizia que só os cidadãos livres podiam estudar — e quem eram os cidadãos livres em 1824? A lei de terras de 1850 definia que só se podia comprar terras do Estado — e quem podia comprar terra em 1850? Foram várias ações que criaram as desigualdades que vemos hoje. Foram quase quatro séculos com as pessoas negras tratadas como mercadoria. Eles construíram as riquezas desse país sem ter acesso a essas riquezas. Então, se pessoas negras hoje não ocupam espaços de poder, eles partem de um lugar social que suas oportunidades são restringidas por causa do racismo. Se pessoas brancas estão ocupando esses espaços, será que é por que elas são mais inteligentes e geniais ou por que tiveram condições concretas para estar naqueles espaços?", questiona. “Para discutir diversidade, a gente precisa discutir desigualdade. Quando a gente conhece a origem social das desigualdades, a gente vai entender as reivindicações históricas dos movimentos negros e as pessoas brancas vão entender a importância de discutir a partir do seu lugar social e como ele foi construído historicamente”, complementa Djamila.

Jovem faz gesto com as mãos que virou símbolo do pedido de justiça do movimento antirracista
Jovem faz gesto com as mãos que virou símbolo do pedido de justiça do movimento antirracista | Foto: Sergio Lima/AFP

É preciso, portanto, romper estruturas da sociedade que levam à segregação. Abdias do Nascimento, escritor, professor universitário e ativista dos direitos civis e humanos das populações negras, faleceu em 2011, aos 97 anos, e já alertava sobre o problema do círculo vicioso de discriminação formado no Brasil. "Os negros vivem nas favelas porque não possuem meios para alugar ou comprar residência nas áreas habitáveis. Por sua vez, a falta de dinheiro resulta da discriminação no emprego. A falta de emprego é por causa de carência de preparo técnico e de instrução adequada. E a falta desta aptidão se deve à ausência de recurso financeiro", afirmou durante uma entrevista.

Manifestação pacífica pede a extinção do racismo em 2020
Manifestação pacífica pede a extinção do racismo em 2020 | Foto: Sergio Lima/AFP

Sobre a participação de pessoas brancas nos protestos e lutas, Djamila é favorável. "Acho que deve, porque o racismo é uma problemática branca, como diz a [escritora portuguesa] Grada Kilomba. Não foi criado por nós. Então, é importante que as pessoas brancas se responsabilizem por isso e tenham de fato ações antirracistas, porque esse é um problema que diz respeito à toda a sociedade, não é um problema da população negra. É fundamental que as pessoas brancas cobrem atitudes, sobretudo nos espaços onde não acessamos. Que elas cobrem, reivindiquem, entendam esse lugar social e a importância de se manifestar e de agir em relação a essas questões. Não basta só reconhecer o privilégio, precisa ter ação antirracista de fato. Ir a manifestações é uma delas, apoiar projetos importantes que visem a melhoria de vida das populações negras é importante, ler intelectuais negros, colocar na bibliografia, escolher quem a gente convida pra entrevistar, quem são as pessoas que a gente visibiliza. É uma série de ações que devem ser tomadas e que as pessoas vão compreender a partir do momento que entenderem a empatia como uma construção intelectual, que exige empenho, esforço e não é algo que vai acontecer espontaneamente, porque precisa ir desconstruindo essas visões. E isso passa necessariamente pela construção intelectual", defende. Para a advogada Priscila Matos, precisa haver mais visibilidade. “Temos muitos profissionais negros de grande talento e competência e que são deixados à margem, devido a essa estrutura preconceituosa da sociedade. Não é racismo velado, é escancarado. É preciso dar visibilidade aos líderes negros, oportunidades aos jovens e colocar a discussão como questão central de políticas públicas”, avalia.

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para aprender mais sobre racismo

Livros

Racismo Estrutural - Silvio Almeida

Imagem ilustrativa da imagem Um basta ao racismo

Este livro deveria ser leitura obrigatória. Simples, didático e de leitura rápida. Ele faz parte da coleção Feminismos Plurais organizada pela Djamila Ribeiro. Em Racismo Estrutural o autor traz estatísticas, dados históricos e explica conceitos para dizer como o racismo está inserido em toda a estrutura da sociedade. É praticamente um dicionário para entender racismo e suas nuances. A primeira edição é de 30 de abril de 2019 lançado pela editora Polén; o livro tem versão para kindle por apenas R$ 14,90.

Pequeno Manual Antirracista - Djamila Ribeiro

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A filósofa Djamila Ribeiro é uma das personalidades brasileiras mais conhecidas que se dedicam ao tema racial. Ela é autora de títulos bem conhecidos como O Que É Lugar de Fala e Quem Tem Medo do Feminismo Negro. Em o Pequeno Manual Antirracista a autora não poderia ser mais didática, são onze capítulos curtos com lições sobre as várias questões que envolvem racismo estrutural, negritude, branquitude e caminhos para quem deseja assumir seu papel na luta antirracista. O livro foi lançado pela editora Companhia das Letras, a primeira edição é de 5 de novembro de 2019. A versão Kindle custa cerca de R$ 9,90 e a capa comum R$ 19,90.

O Genocídio do negro brasileiro: Processo de um racismo mascarado - Abdias Nascimento

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Abdias Nascimento é um dos grandes pensadores negros do Brasil com contribuições extremamente relevantes, como em O Genocídio do negro brasileiro: Processo de um racismo mascarado, texto apresentado no Segundo Festival de Artes e Culturas Negras em 1977, em Lagos na Nigéria. Neste livro, o autor desmascara a falácia de que no Brasil vivemos uma democracia racial e que o problema é apenas de classe e não de cor. Abdias faz comparativos entre o negro nos Estados Unidos, na África e no Brasil e faz apontamentos sobre a política brasileira que conduz há séculos o chamado genocídio da população preta. A edição à venda foi lançada pela editora Perspectiva em 7 de novembro de 2016, a versão Kindle custa cerca de R$ 30,82 e capa comum R$ 42,00.

Filmes para refletir sobre racismo

Histórias Cruzadas

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| Foto: Reprodução

O filme é de 2012, com direção de Tate Taylor. O enredo se passa na pequena cidade norte americana de Jackson no estado do Mississipi, durante os anos 60. Skeeter (Emma Stone) é uma garota branca que sonha em ser escritora e começa entrevistar as mulheres negras da cidade para um livro. A história é cheia de emoção e retrata o contraste social gritante entre negros e brancos dos Estados Unidos.

Corra

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O longa Corra foi lançado em 2017 com direção de Jordan Peele e está disponível na Netflix. A história tem desde o início um clima de suspense que beira o terror, tudo começa quando Chris (Daniel Kaluuya), um jovem negro, viaja para conhecer a família de sua namorada Rose (Allison Williams) uma moça branca. Depois disso o filme é inteiro de surpresas e cenas que ninguém esperava. O debate sobre racismo na trama é profundo e complexo.

Cidade de Deus

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Filme brasileiro com direção de Fernando Meirelles e Kátia Lund, lançado em 2002. Buscapé (Alexandre Rodrigues) é um jovem pobre e negro que cresce no contexto violento da periferia Cidade de Deus, no Rio de Janeiro. O garoto tem medo de se tornar bandido e tem muito talento para fotografia e através do olhar fotográfico deste personagem que a vida na favela é retratada.

Artistas que cantam e pensam a questão racial

Mano Brown

Pedro Paulo Soares Pereira, Mano Brown, é um ícone do rap nacional integrante do grupo de rap paulista de 1998, Racionais Mc’s. Como é característico no rap, suas letras falam sobre desigualdade tanto de classe quanto de raça. Tente ouvir e fazer uma reflexão.

Djonga

Gustavo Pereira Marques, o Djonga, o artista é um rapper mineiro que ganhou seu espaço na cena artística brasileira e se apresenta como um dos nomes mais expressivos do rap. Famoso por suas letras pesadas e sem censura, é aplaudido e criticado por sua música de trabalho Olho de Tigre, com o verso Fogo nos Racistas. Mas críticas a parte, as letras do mineiro trazem conhecimento histórico e vivências pessoais de um jovem negro que são uma verdadeira aula.

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Elza Soares

Elza Gomes da Conceição, a rainha da música brasileira Elza Soares, como mulher negra, suas músicas sempre tiveram potência. A artista é conhecida por muitos trabalhos, mas tem letras necessárias e que tocam na questão racial, como A Carne Negra. “A carne mais barata do mercado é a carne negra / Que vai de graça pro presídio / E para debaixo do plástico / Que vai de graça pro subemprego / E pros hospitais psiquiátricos.”

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Gentem, eu respeito muito as manifestações e opiniões de todxs. Todo protesto é válido e não existe a maneira mais correta de fazer, mas eu NÃO vou esconder meus negros com uma tarja preta. Eu não vou me esconder num blackout que não faz sentido pra mim. Eu quero é luz, quero foco em nós, no povo preto desse país! Me perdoem, mas ver tanta gente linda e necessária escondida por um quadrado me da arrepios. Acho tão perigoso isso, gentem. Me faz pensar se o caminho é realmente esse e me da uma sensação de anulação, sabe? Porque não propormos então, que a rede toda, que todxs inundem as redes sociais com nosso povo preto. Principalmente as pessoas que são ou se autodeclaram brancas e possuem milhões de seguidores. Vale postar imagem de gente famosa, gente que não é famosa, daquela amiga negra que você admira, de um parente, do gerente da empresa que você trabalha, daquele estilista que você usa as roupas, do ex-presidente negro que você aplaude, da moça que cuida da sua casa, do porteiro, de todxs xs negrxs, sejam lá conhecidos ou não. Que tal? Não importa a sua raça, vamos subir a hashtag #OndaNegra e ocupar a internet com a imagem linda de uma mulher negra, de um homem negro e mostrar que não precisamos de uma tarja para protestar, mas sim de visibilidade. Eu vou começar postando essas mulheres negras fantásticas que eu amo, que me representam na vida e no meu @musicalelza 🙏🏾 @larissaluzeluz @veronicabonfimoficial @laislacorte @khrystal @_janamo @juliatizumba @kesiaestacio . Sendo justa, me inspirei nos Stories do @flaviorenegado para essa campanha #ondanegra #vidasnegrasimportam #gentepreta #blackpeople #povopreto #visibilidade #representatividade #elzasoares

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