Quino, o fabuloso cartunista argentino (1932 Mendoza -2020 Buenos Aires), enquanto latino não poderia ter sido mais universal. Filho de imigrantes espanhóis (Andaluzia), Joaquim (daí o Quino) abandonou a faculdade de Belas Artes e passou a se dedicar aos quadrinhos – dir-se-ia: perderam as Belas, ganhou a Arte...

Quino é pai de Mafalda que, de sua vez, embora insista em seguir com seis anos desde sua criação há 57 anos, é mãe de minha geração. Mafalda nos deu à luz ao cultivar um inconformismo feminino latente, único, desafiador do status quo – em uma Argentina assombrada por mais um de seus incontáveis golpes militares...

Ameaçado pelos canhões do perigo que representava uma menina de seis anos contestando o mundo a partir de Santelmo (de onde Mafalda nunca saiu), em 1973 Quino aposentou (precoce e desgraçadamente) sua obra-prima... Silenciando Mafalda Quino emudeceu a própria vida, naquilo que a noite se lhe caiu em um longo apogeu humanista, onde seu silêncio foi compreendido à sombra das armas da ditadura...

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O silêncio imposto pela ditadura argentina não impediu Quino de seguir falando e contestando o mundo pelas tiras já publicadas de Mafalda – que se espalharam mundo afora, enriquecidas de significado à cada ignomínia que os anos de chumbo produzissem.

Por paradoxal que possa parecer, Quino, calado, fez mais pelo progresso da humanidade do que o mais eloquente dos generais. Fruto de seu gênio, nós outros, os milhões de leitores de sua menina contestadora, seguimos não temendo a farândola ignata que chora pelos messias estrelados de latino américa, notadamente aqueles que a mitologia jamais reconheceu...

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É que todo fascista morre de medo de Mafalda; afinal ela é uma menina que, com apenas seis anos de idade, sabe articular os próprios pensamentos e não se curva ao absurdo. Mafalda tem consciência política e, nos dias de hoje, só sairia de casa usando máscara.

Fato é: o mundo que Quino procurou mudar pelos olhos de Mafalda, de fato se modificou na redemocratização dos Hermanos (e na nossa, tanto quanto) mas, de sua morte para cá, como andaria a vida nos cafés argentinos e nos botecos brasileiros?

Em 30 de setembro de 2020 os jornais contabilizavam um milhão de mortos pela Covid-19. Hoje essa conta alcança mais de quatro milhões e setecentos mil...

Há um ano a Universidade da Pensilvânia anunciava a inutilidade do tratamento precoce à base de cloroquina para combater a Covid-19, enquanto aqui no Brasil o messias era seu garoto propaganda...

Foi na data de seu passamento, Quino, que os nossos jornais publicaram o relatório de violência contra os povos indígenas, demonstrando que os números haviam dobrado por aqui. E o desemprego? Há um ano o número chegava a 13.1 milhões de desempregados no até outro governo (pré-golpe de 2016). Hoje somos mais de 14 milhões...

Em meio a essa realidade viral, por aqui o messias lançou mão de uma política negacionista. Disse não às vacinas, ao uso de máscaras, ao SUS, ao distanciamento social e disse sim ao ‘véio da havan’, ao passeio aglomerante de motocicletas, à regina duarte, à cloroquina e outras tragédias mais...

Descortinou (ele, o messias) das profundezas de seu universo paralelo a semente raivosa do descontentamento desmotivado, convocando seus guerreiros pelo berrante de sérgio reis, a se manifestarem contra nossa Corte Suprema – mas não saia às ruas perguntando o porquê do rebanho protestar contra o Supremo, que o gado não saberá lhe dizer...

Imagino Mafalda interagindo com nossa circunstância modal...

A ditadura que Quino combateu com o lápis não matou, todavia, seiscentas mil pessoas. Seria o vírus, então, mais poderoso que o canhão?

Creio que sim. Até porque o vírus, ao mutar, evolui. O estupor nunca.

O mundo, neste ano de sua ausência, Quino, seguiu marchando a insensatez negacionista e proliferando a mentira que os ignatos contam aos seguidores de mitos. O cotidiano de Santelmo, onde reside Mafalda (ainda que reclusa), se despede de você Quino, não da ignorância. E essa deve ser a sua grande dor.

Saudade Quino; o mundo é bem menos feliz sem a tinta de sua poesia...

Tristes e diminuídos trópicos.

* João dos Santos Gomes Filho é advogado.

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