A dor, quando dói, dói...

Meus heróis estão desencarnando. Quando jovem alguns amigos que não entendiam minha latinidade exacerbada pediam que eu elencasse cinco motivos para amar os Hermanos do Rio da Plata e desgostar tanto dos pilgrims do Norte. Minha lista inexorável cravava em favor da América do Sul Borges, Piazzola, Cortazar, Maradona e Mafalda...

Seguia-se interessante discussão à mesa do Bar do Janjão, onde Bhrama gelada e pinga com umburana animavam nossas vidas no interior paulista nas férias da vida acadêmica em Londrina: Mafalda? Não seria o Quino, pai da personagem, a lhe merecer a atenção, na linha criador e criatura? Então crava Quino em lugar de Mafalda...

Que nada; ainda que Quino seja um dos gênios do século vinte, Mafalda lhe antecede enquanto marco de uma resistência que só as ninhas podem e sabem ofertar – e fazer Mafalda uma menina de eternos seis anos, com visão crítica do mundo, foi a maior das sacadas de Quino.

O engraçado da metonímia viva que me abraçou na confusão Mafalda/Quino sempre será um cartum (de Quino) sem Mafalda, mas com um outro personagem seu: um velho argentino....

O velho de chapéu entra em uma sala e em respeito ao ambiente tira seu chapéu, colocando-o em uma chapeleira. Segue alguns passos e se depara com um enorme espelho a lhe refletir a imagem, ainda de chapéu. O velho se espanta ao tempo em que um mordomo que a tudo assistia esclarece: o espelho é muito antigo, está sempre alguns segundos atrasado...

Mafalda estava sempre alguns segundos adiantada. Quino, enquanto poeta do lápis, paria haicais num destempo que não se fazia na toada do atraso ou do adianto. Em Quino o tempo era sempre o de rir das bobagens que a vida colaciona pelos olhos e questionamentos de Mafalda...

Mafalda é de 1964 (um aninho apenas mais velha que eu). Nessa época os hermanos eram governados constitucionalmente por Arturo Illia, deposto por um golpe de estado militar em 1966 – e esse é um dos motivos que elenco para desgostar dos pilgrims: eles estão sempre patrocinando golpes militares em latino américa, como se aqui fosse o seu quintal...

O golpe militar expulsou os pensadores argentinos, que se exilaram – aconteceu por aqui também, em que pese negacionistas de terra plana insistirem na distopia...

Como já não tenho paciência com sicofanta, foquemos na simetria histórica que nos une aos hermamos. A flor que nosso pântano comum luziu foi Mafalda, pelo grafite mágico de Quino.

Mafalda é uma menina de seis anos de idade (há exatos 56 anos; isso é maravilhoso ou não?), que não gosta de sopa e ama os Beatles (como não amar quem ama os Beatles?). Seu desenho predileto é o Pica Pau que, durante muito tempo foi o meu desenho predileto tanto quanto...

Ainda que jovem há tanto tempo, Mafalda revela uma visão crítica e muito bem resolvida da vida, o que lhe dá o poder de questionar o mundo à sua volta, principalmente o contexto da contracultura dos anos 60. Mafalda é uma humanista...

Obrigado Quino. A vida sendo questionada pelos olhos de uma menina de seis anos sempre será melhor, ao tempo em que nos legará uma esperança de que as coisas, um dia, hão de mudar...

O tempo, entrementes, passou. Mafalda fez (anteontem) cinquenta e seis anos, ainda que continue tendo seis. Com os anos que não ganhou (embora os tenha vivido) Mafalda viu sua Argentina mudar, em tempo de se livrar de seus ‘ridículos tiranos’, ainda que remanesçam os lacaios de sempre a lamber botas dos pilgrims (isso lá e cá), seguindo a vida em gris...

Fato é: e agora? Como suportar o lambe botas que ensaia um deep-throat em tio sam ao tempo em que nos falta a magia do grafite questionador de Quino? Qual o amanhã de Mafalda? Morrerá Mafalda com Quino?

Angústia quase parecida senti quando morreu o poeta Renée Goscinny. Asterix sobreviveu com Uderzo, mas não foi o mesmo – perdão Alberto...

Mafalda já é eterna há uns cinquenta anos e a ela devemos o reconhecimento de que a vida sem questionamentos não é senão a sujeira da bota na língua dos lambe botas...

Foi sim tudo muito rápido Quino. Obrigado por sua menina de vestido que questiona o status quo do mundo, ao tempo em que permanecia com seis anos...

Mafalda, eu sempre a amarei...

Tristes e pouco questionadores trópicos, onde as meninas de vestido, de seis anos, são imprescindíveis. Saudade Pai...

João dos Santos Gomes Filho, advogado