Domingos Pellegrini:"Não fui bem entendido por causa de uma frase, como quem ouve uma sinfonia mas vaia porque o fagote desafinou"
Domingos Pellegrini:"Não fui bem entendido por causa de uma frase, como quem ouve uma sinfonia mas vaia porque o fagote desafinou" | Foto: Gustavo carneiro/ Arquivo Folha - 03-12-2018

Cento e trinta e três anos após a aprovação da Lei Áurea que determinou o fim da escravidão no Brasil, a igualdade racial ainda está longe de ser uma realidade no País. Estatísticas recentes demonstram que que 75% das vítimas de homicídio são pessoas negras; o índice de desemprego é 71% maior entre os pretos quando comparado à população branca; entre os empregados com carteira assinada, trabalhadores brancos têm, em média, salários 45% maiores que os afrodescendentes.

Além de lutar para reverter os índices levantados por órgãos oficiais, a população negra e parda também tem levantado a voz contra o racismo estrutural. O termo tem sido usado para definir hábitos, situações e falas que embora tenham sido usados com naturalidade durante décadas ajudam a promover a segregação ou o preconceito racial, ainda que não sejam usados com essa intenção.

Esse tema tem gerado debates inflamados. Um episódio recente foi um artigo de autoria de Domingos Pellegrini publicado pela FOLHA na edição do dia 20 de março. Intitulado “Macaco com orgulho”, o texto causou polêmica nas redes sociais, além de cartas e artigos que questionam as abordagens raciais.

Com o objetivo de fazer uma reflexão e ampliar o debate sobre o assunto, a Folha 2 convidou o escritor londrinense que assina a coluna semanal “Aos Domingos Pellegrini” e Fiama Heloisa dos Santos, jornalista que atua como presidente do Conselho Municipal da Promoção da Igualdade Racial em Londrina, para darem sua visão e interpretação sobre o assunto. Mediar conflitos é também papel da imprensa que pode contribuir para a transformação das relações sociais e culturais. Segue a entrevista.

Domingos Pellegrini:"Não fui bem entendido por causa de uma frase, como quem ouve uma sinfonia mas vaia porque o fagote desafinou"
Domingos Pellegrini:"Não fui bem entendido por causa de uma frase, como quem ouve uma sinfonia mas vaia porque o fagote desafinou" | Foto: Gustavo carneiro/ Arquivo Folha - 03-12-2018

A crônica de Domingos Pellegrini “Macaco com Orgulho” traz uma abordagem de nossas origens, segundo o evolucionismo, que coloca a humanidade – incluindo-se aí pretos, brancos ou amarelos – como descendente de macacos. No entanto, a palavra “macaco”, sob o ponto de vista cultural e histórico, é associada a uma ofensa grave em relação à raça negra, no sentido de inferiorizá-la ou animanizá-la. Como vocês interpretam o uso dessa palavra no contexto da crônica?

Domingos Pellegrini - A macaquice é usada pelos racistas como provocação, e o jogador negro que engole a isca, enraivecendo, aos provocadores se iguala emocionalmente e acaba até enraivecendo quem só queria ver futebol. Em vez de partir para uma bola assim dividida, convido o jogador a dar um chapéu, agradecendo por gestos a provocação e, depois, explicando à imprensa que agradeceu a quem assim faz lembrar que viemos todos da raça negra, a mãe de todas as raças, acrescentando que basta pesquisar no celular para comprovar isso. Em vez de confrontar, usar e superar o provocador.

Fiama Heloísa dos Santos - Devemos entender que o Brasil é um país onde a ideia de “democracia racial” – conceito de que negros, indígenas e brancos vivem harmoniosamente – foi utilizada para mentir sobre a existência do racismo no país. E isso não vai mudar enquanto não combatermos nossas raízes escravocratas. Não adianta o autor do texto tentar trazer outra perspectiva para o termo em questão. Sabemos que uma boa parcela dos leitores acaba por assimilar à palavra “macaco” tom jocoso ou pejorativo à população negra e isso tem a ver com a nossa formação, construíram ideias que nos diminuem e isso ainda não foi desconstruído.

A imagem selecionada pelo autor para ilustrar o texto foi uma cena clássica de cinema, com Tarzan e a macaca Chita, sendo que, no caso, o protagonista do filme faz um gesto de silêncio à macaca. Como vocês interpretaram o uso desta imagem?

Fiama Heloisa dos Santos - Como uma tentativa de silenciamento. Se a intencionalidade do autor era correlacionar a imagem da população negra com o macaco, por que somos representados como aquele que deve apenas ouvir o que, justamente, um homem branco fala? Ao escolher tal imagem fica a ideia de que nós negros não temos direito de reclamar ao sermos comparados com macacos, o autor não quer questionamentos sobre sua opinião. O texto é sobre nós, sobre nossas dores e, mesmo assim, não teríamos o direito de colocar o que sentimos. Querem determinar o que devemos pensar, como devemos agir. Algo fácil para quem jamais saberá o que é passar por tal ofensa.

Domingos Pellegrini - Achei adequado usar imagem do companheirismo entre Chita e Tarzan, um menino que ficou órfão dos pais e, na floresta, foi adotado por macacos e acolhido por negros pigmeus, passando a defender uns e outros de vilões geralmente brancos. Para saber porque ele está pedindo silêncio a Chita, só mesmo revendo a cena toda no filme original da foto, embora já tenham aventado que Tarzan está censurando Chita...

Um texto como esse pode provocar conflitos de ideias e de posturas éticas, sociais e culturais. Mas qual o papel do conflito, em suas opiniões, nas lutas das minorias. Os conflitos também empurram ou só travam os processos de transformação?

Domingos Pellegrini - Acredito em formas criativas para superação de conflitos, como Ghandi, que com sua não-violência derrotou o Império Britânico, Nelson Mandela, que com o perdão, seguido das devidas compensações, derrotou o apartheid, ou Jesus, que com sua doutrina irmanadora fez ruir por dentro o Império Romano. Creio porém que, mais que culturalmente, a plena cidadania negra/mestiça se dará com educação, empreendedorismo e cooperativismo. A boa notícia é que nas universidades os cotistas negros já superam os outros em média escolar.

Fiama Heloisa dos Santos - Os conflitos são necessários para superação das diferenças, porém temos que entender o que é ético e o que não é. O que machuca o outro, o que oprime, o que pode até matar alguém, não é apenas um “conflito de ideias”. Animalizar os negros já justificou a nossa escravidão. Hoje, a sociedade se envergonha do que fez, mas isso também já foi “apenas um confronto de ideias” entre escravagistas e abolicionistas. Quando se tenta dizer que o racista, o homofóbico, o machista é apenas um sujeito que diverge das ideias, na verdade é uma forma de validar todo esse processo monstruoso que vivemos. Pessoas ainda morrem pelo simples fato de serem quem são, muitas vezes “macacos”.

Fiama Heloisa dos Santos: "Os conflitos são necessários para superação das diferenças, porém temos que entender o que é ético e o que não é"
Fiama Heloisa dos Santos: "Os conflitos são necessários para superação das diferenças, porém temos que entender o que é ético e o que não é" | Foto: Gustavo Carneiro

São inúmeras as matérias que circulam hoje sobre as questões raciais, sejam expressando indignação, denúncia ou a necessidade de transformações na relação entre pretos e brancos. A própria Folha já publicou muitas delas. Como vocês veem o papel da imprensa no empoderamento do movimento afrocultural?

Domingos Pellegrini - Quem superará mesmo o racismo será a educação. A noção de que Adão foi negro devia ser matéria escolar, na idade em que a criança adota preconceitos, que porém podem ser minados profundamente por informações fundamentais como as da crônica. Assim se poderá superar a desinformação, mãe dos preconceitos, coisa que a indignação e o protesto apenas não conseguem. Em vez de chutar a bola pra arquibancada, revelar a ignorância dos racistas, até para contar com a simpatia e o apoio do público da arquibancada e de casa.

Fiama Heloisa dos Santos - Primeiramente, somos um movimento social em busca de políticas públicas que garantam os direitos da população negra e indígena. Quanto à imprensa, a consideramos um pilar primordial para a democracia. Porém, ela também está dentro da estrutura social brasileira e, muitas vezes, reproduz o racismo. O verdadeiro empoderamento só acontecerá quando fizermos parte das estruturas, quando tivermos poder de decisão, quando pudermos falar ao invés de apenas sermos ouvidos. Faltam profissionais negros atuando na imprensa. Em Londrina, por exemplo, onde estão os jornalistas negros? A imprensa transmite a informação por um olhar branco e quase nada representativo em relação à diversidade.

Vocês consideram que o conflito gerado pela publicação da crônica “Macaco com orgulho” possa contribuir para avanços sob ponto de vista cultural e social em nossa cidade, levando-se em consideração não só o texto publicado mas também as críticas que ele gerou?

Fiama Heloisa dos Santos - Em partes sim, porém é delicado já que a primeira mensagem transmitida foi de racismo. Além disso, não teremos o mesmo espaço e visibilidade que o autor já tem. Este material será publicado em local diferente da crônica do autor, será que os leitores dele irão ver esta matéria? Será que eles leram o texto do Alexandro Eleoterio, publicado na seção de Opinião e não no mesmo espaço da crônica do autor? Será que, realmente, foi possível passar essa mensagem? O racismo continua matando diariamente, seja de forma figurada ou literal devido aos jovens negros assassinados na periferia. Só queremos viver com dignidade!

Domingos Pellegrini - Não creio em conflito mas em diálogo e integração. Não fui bem entendido por causa de uma frase, como quem ouve uma sinfonia mas vaia porque o fagote desafinou. Minha intenção foi propor ao movimento negro um campo além da indignação, do repúdio e da reclamação. Creio, até porque é evidente, na integração universal das raças, como se vê em todos os países onde cresce continuamente a mestiçagem. Espero que o movimento negro me perdoe pelo fagote e use a sinfonia.

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