A vida tem das suas. Há encontros que gostaríamos de ter evitado, adiado, denunciado. Outros, contudo, surgem tardiamente, deixando no ar uma sensação de espera demasiada, de um prejuízo irreparável. Apareceu-me recentemente a obra do gaúcho João Gilberto Noll (1946-2017), cujos livros – principalmente os romances – estão fazendo a minha cabeça.

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A letra de Noll é rápida e incerta. Suas personagens são errantes, desfamiliarizadas, e parecem ter saído de uma história pensada e redigida de um fôlego só. Entre um cenário e outro, inexistem capítulos, divisões, espaços de suposta definição. Tudo acontece ao mesmo tempo, numa ininterrupta narrativa de gozo, insanidade e absurdo. Como o próprio autor admitiu, existe um existencialismo incontornável em sua ficção.

Desde que li o romance “Harmada” (meu primeiro contato com a obra de Noll), saí em busca de tudo que dissesse respeito a esse vencedor de cinco prêmios Jabuti, um dos mais notáveis da literatura brasileira. Aliás, lembro que li “Harmada” de uma só vez, sem parar nem respirar – foi-me impossível largar o livro por qualquer motivo, mesmo que fosse um bom café.

João Gilberto Noll
João Gilberto Noll | Foto: Divulgação

Em “Harmada”, tudo se dissolve a toda hora. Um ator fracassado pula de cena em cena e vive acontecimentos inusitados, refaz caminhos, redescobre um passado sob escombros. João Gilberto Noll sempre dizia que criou um único personagem: embora seus livros tragam protagonistas inéditos, a alma deles é uma só.

Nas histórias de Noll, desdobra-se um sentimento de inadequação, por meio do qual todos que transitam pelas páginas do livro se referem uns aos outros, sem elos, sem porquês. Tudo flui, captura o leitor, esmaga o previsível e diz que muito mais está por vir, apesar de as histórias serem breves, uma única lufada de ar impuro, inebriante.

O roteiro de Noll prefere as vísceras do mundo, transita entre linguagem escatológica, sexo, perdição e rompantes de loucura. Numa entrevista, Noll afirmou que suas personagens dizem tudo que jamais é dito em público, que a gente esconde, faz questão de fingir que não existe. A sensualidade das palavras provoca o leitor, coloca-o em estado de permanente vigilância. Se há uma obra diante da qual a distração se revela um perigo, essa obra é o universo ficcional de João Gilberto Noll.

A arte do encontro com Noll se segue em livros como “A céu aberto”, “A fúria do corpo”, “Hotel Atlântico”, “Rastros de Verão”, “Lorde”, entre tantos outros. De sua obra surgiram adaptações para o cinema e o teatro. Trata-se, pois, de um repertório aberto, a ser desvendado, apreciado, homenageado permanentemente.

O também escritor Fabrício Carpinejar, logo após a morte de Noll, escreveu em jornal que o autor de “Harmada” foi assassinado pela indiferença de nossa sociedade à arte e à cultura, pelo desprezo de quem nos conduz e, no fim e ao cabo, detesta a inteligência como sinal de vida. É bem provável. O fato, no entanto, é que os livros de João Gilberto Noll estão aí. Aproveitem-nos à exaustão!

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