O escritor cubano Onelio Jorge Cardoso (1914-1986) dizia que as pessoas têm dois tipos de fome: uma biológica, associada às necessidades físicas da sobrevivência, outra de beleza, ligada aos aspectos lúdicos e espirituais da vida. O segundo tipo se sacia com arte e cultura, na extensão de dias que correm ao lado da leveza, da sabedoria e da partilha do mundo. O primeiro tipo, de modo completamente diferente, requer alimento, cuidado e políticas voltadas para a plena realização da dignidade humana.
No Brasil, o tema da fome voltou à tona nos últimos anos, quando mais e mais cidadãos cruzaram a fronteira da miséria ou se inseriram nos mapas da insegurança alimentar. Já tratei do assunto mais de uma vez aqui em “A cidade futura”, mas, ao que tudo indica, o assunto é inesgotável.
Foi Josué de Castro (1908-1973) quem denunciou nosso país como o avesso de sua malfadada fama de abundante e generoso. Em vez de ser um território de comunhão, Castro revelou a desunião, a concentração de terras, o jogo político que ainda é possível fazer explorando a fome de variadas multidões. Não apenas a fome do corpo – também a fome que inibe a constituição de uma verdadeira identidade nacional.


O autor de “A geografia da fome” foi bem mais do que médico; foi um militante da vida, com um pé em cada mundo da ciência e da política, inclusive naquele que exige de seus adeptos a mão na massa, o corpo em campo, a cabeça presente onde os problemas realmente estão. Castro foi um intelectual no sentido amplo da palavra, capaz de reunir a teoria e a prática em suas elaborações mais sofisticadas e inteligentes. Até hoje é aclamado como um dos maiores brasileiros da história.
Para o pernambucano Josué de Castro, a fome é multidimensional e complexa. Para ser compreendida e combatida, precisa ser vista em seus aspectos de alimentação, estruturação social, desenvolvimento econômico, articulação política e planejamento cultural. Há universos que colidem quando a questão é a fome. Superá-la exige investimentos humanos e materiais na fabricação de um país interessado em repartir, em vez de acumular; em humanizar, em vez de destruir; em consolidar a democracia, em vez de fazer gracejos diante do autoritarismo sempre à sombra.
Como fenômeno social total – envolvendo economia, política e cultura –, a fome está intimamente entrelaçada ao nosso terceiro-mundismo, à condição de país abandonado na periferia do capitalismo. Trata-se, portanto, de uma chaga diretamente associada à questão de nosso insistente subdesenvolvimento. Destravar os caminhos do Brasil passa por admitir, antes de tudo, quem são aqueles que passam fome – isso revelaria sem contornos uma sociedade violenta, preconceituosa e excludente.
Dado o primeiro passo (assumirmo-nos como somos), o enfrentamento da fome postula uma revolução democrática. Distribuir alimentos por meio de solidariedade, emprego e renda ainda serve como um bom início de conversa. O papo, contudo, tem tudo para adentrar milhares de madrugadas.
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