A gente ia de trem-leito a São Paulo, numa cabine eu com o pai, noutra a mãe com a irmã. Decerto hoje a cabine pareceria pequena, mas então foi grandioso colocar minha malinha no alto do beliche, depois sentar na cama baixa vendo o mundo passar pela janela e o pai mexer na cueca.

Ele levava o grosso do dinheiro num saquinho espetado na cueca com alfinete de fralda, prevenção contra batedores de carteira. Falavam tanto de ladrões em São Paulo que era o que eu mais queria ver. Mas, depois de comer no vagão-restaurante a comida mais chique da minha vida, o dia seguinte passamos em São Paulo numa andação danada e não vi ladrão nenhum.

Ficamos num hotel onde a mãe dormiu de sandália na mão pra matar pernilongos, e o café da manhã foi a segunda refeição mais chique da minha vida, tinha até salada de frutas com creme, grande novidade, mas o melhor de tudo era que depois a gente ia pro mar.

Fomos a Santos de ônibus, admirando os abismos da serra, e daí fomos de táxi a São Vicente, uma praia comprida de perder de vista e larga de não se ver o mar. O hotel era menor que nossa Pensão Alto Paraná, e, finalmente na areia, o pai falou pronto, pode correr para o mar. Corri para onde ele apontou, sentindo a areia fina e quente virar um chão liso e úmido como eu nunca tinha pisado e, de repente, quando ergui a vista, estava diante do mar que também se perdia de vista.

Na praia em 1956 com mãe, pai, irmã e a babá Lucinda Grotti
Na praia em 1956 com mãe, pai, irmã e a babá Lucinda Grotti | Foto: Arquivo familiar

Quando cansei das ondas que o mar não cansava de mandar, descobri os castelos de areia e os bichinhos da praia. E, depois de catar conchas e perseguir sirizinhos, perguntei o que mais fazer no mar e o pai disse que ia mostrar, entrando nas ondas e eu atrás. Eu já tinha aprendido a nadar malemá em piscina, e ele foi mostrando como dar uma nadadinha entre uma onda e outra, e como furar onda pulando ou mergulhando, que descoberta!

Era a primeira vez que eu via com todo seu corpo em ação aquele homem que eu conhecia com guarda-pó de barbeiro e gestos gentis. Agora, saltava e mergulhava e eu imitava feliz, eu e meu pai no mar!

Então ele me ensinou a pegar onda ou jacaré, como ainda nem se dizia naquele tempo. Era pegar a onda no momento em que se alteia e curva para quebrar, quebrando nas nossas costas e empurrando para a praia com um rugido de muitos motores. Peguei várias ondas, até que duas se encavalaram e, em vez de deslizar rumo à praia, me senti socado e rolando pela areia revolvida da arrebentação, até que a mão firme de meu pai me pegou. Mãe viu lá da praia e já veio perguntar que foi, eu tossia engasgado mas ele disse que não era nada, eu só estava conhecendo o mar...

Agora, setentão, volto ao mar e o corpo diz que não quer mais pegar ondas como sempre fiz desde então. Uma das vantagens da velhidade é a autoconsciência... Agora apenas fico revendo o mar e aquele homem e aquela mulher de onde vim, e que tanto cuidaram e esperaram de mim, e se foram, e então me pega uma onda que vem do tempo e sai em gotas pelos olhos.

Obrigado, pai, obrigado, mãe! Obrigado, mar!