História de família: uma faca e um facão que parecem falar
A faca Tiana é para mim símbolo de eficiência com simplicidade, já o Bepe, mistura de faca de pão com facão, é bem rústico
PUBLICAÇÃO
sexta-feira, 15 de novembro de 2024
A faca Tiana é para mim símbolo de eficiência com simplicidade, já o Bepe, mistura de faca de pão com facão, é bem rústico
Domingos Pellegrini

Sobre a escrivaninha ficam sempre a faca Tiana e o facão Bepe, minhas heranças da vó Sebastiana e do nono José/Giusepe. Estão sempre me lembrando que tenho origens, e que só cheguei aqui porque eles e muitos outros antes me trouxeram, numa ponte de sangue entre as gerações.
Tiana tem mais de século, pois vó Tiana dizia que herdou da sua mãe. O cabo é de madeira tão sólida e pesada que se sente ao pegar. A lâmina porém é fina e com só um gume de corte, afiado tantas vezes que se encurvou graciosamente; enquanto o gume cego é reto até perto da ponta, quando se encurva para encontrar o outro gume, formando um bico porém de ponta rombudinha.
A lâmina foi inserida em frincha no cabo de osso e presa por três pregos tão bem batidos ou prensados que nem são sentidos pelos dedos; mas estão ali, com seu brilhinho de metal na madeira, metal e madeira simbolizando as raízes ibérica e índia da vó, que estão também nos seus sobrenomes Rodrigues, português, e da Silva, “da selva”.
Ela usava a faca todo dia, fazendo suas comidinhas, como dizia, o quibebe, a sopa de mandioca com cambuquira, a canja de frango caipira que cozinhava no fogão a lenha a tarde inteira. O gume, dizia ela, encurvou-se gastando de tanto ser afiado todo dia, era assim uma “faca santa” de tão serviceira e sofrida.
Então a faca Tiana é para mim símbolo de eficiência com simplicidade. E ainda trabalha, abrindo caixas e envelopes, sua lâmina curva parecendo feita pra cortar papel. Tiana entretanto é usada só em serviços secos e leves, evitando água e força, para sem ferrugem ou quebra durar mais algumas gerações como preciosa relíquia.
Já o Bepe, mistura de faca de pão com facão, é bem rústico, até porque feito pelo nonno mesmo, na sua oficina caseira com morsa e ferramentas. Ele pegou uma fita de ferro com milímetro de grossura e quase dois palmos de comprimento, e enfiou em frincha num cabo de madeira ainda com certo lustro de mão de tão usado que foi, ainda vestígio de Giusepe.
Já sua lâmina, cega num gume e serrilhada no outro, com o tempo escureceu. Também foi enfiada numa frincha até metade do cabo, aí trespassada por um prego com cabeça bem enfiada na madeira. E, no alto do cabo, a frincha é apertada por grosso arame com seu nó, um explícito detalhe artesanal.
Sabe-se lá que o nonno cortava com essa lâmina serrilhada, própria de faca de pão, mas a nonna disse que não era coisa da cozinha, era da oficina, talvez pra cortar as latas com que ele fazia canecas ou os ossos do porco de Natal. Certo é que o facão Bepe é símbolo de criatividade, de fazer com o que se tem nas mãos, reciclando e casando materiais, de dois contrários como ferro e madeira fazendo surgir um utensílio.
Na prática porém Bepe deixou de ser útil, nisso deve sentir ciúme de Tiana. Formaram um casal na escrivaninha, como Tiana e José no romance Terra Vermelha, ela personagem baseado na mãe de minha mãe, ele baseado no pai de meu pai. Na vida real, os dois avós gostavam de contar histórias que ouvi menino, e ainda escuto suas vozes em Tiana e Bepe, uma faca e um facão que falam.

