Em redor do fogo
Um dia chegavam motoristas vindos de um atoleiro com fome de semana, outros contavam histórias de posseiros
PUBLICAÇÃO
sábado, 08 de junho de 2024
Um dia chegavam motoristas vindos de um atoleiro com fome de semana, outros contavam histórias de posseiros
Domingos Pellegrini
No quintal da Pensão Alto Paraná, os peões acocoravam ou sentavam sobre tijolos, em redor do fogo do tacho de sabão, para esquentar os joelhos, diziam, mas o menino sabia que era para contar histórias, que ele ouvia sentado no chão. Eram peões tidos como ricos, derrubando matas para cafezais, ou caminhoneiros de café para o porto, todos com bastante trabalho e bastante dinheiro naquela Londrina Capital do Café. Alguns peões supliciavam os pés com sapatos de verniz, outros arrancavam dentes naturais para sorrir com dentes de ouro, e a eles ali se juntavam mascates com suas malas e lembranças, lavradores com seus sacos e casos, camelôs com sua lábia.
Um dia chegavam motoristas vindos de um atoleiro com fome de semana. Outros contavam histórias de posseiros, lutas por terra, e camelôs contavam lorotas, um mascate espalhava boatos.
Uma noite, trouxeram cadeira para um cego, perguntaram de onde vinha, respondeu que vinha de todo lugar, sempre procurando.
- Procurando o que, cego?
- O que sempre acho, uma roda de gente como aqui.
Aí um peão brilhoso de jóias, que sempre queria mostrar também brilho de ideia, perguntou alto:
- Cego, se tudo vem da terra e pra terra volta, e se até nós mesmos estamos aqui devido ao café que vem da terra, o que pode valer mais que a terra?
- Mas – falou o cego – que seria da terra sem a chuva? E como o café ia madurar sem sol?
Alguns riram do peão mas o cego continuou, como se olhando longe com seus óculos escuros:
- E também nada valeria a terra sem trabalho. Pois até as nossas histórias não vem do trabalho?
- Mas – o peão rebateu – e tantas histórias de amor, cego, vem daonde? O cego deu umas palmadinhas no peito:
- Pois o coração não trabalha o tempo todo? O namoro já dá muito trabalho, o noivado é uma trabalheira, o casamento é um trabalhão pra depois passar a vida trabalhando pros filhos, o amor é uma trabalhação!
Riram e até bateram palmas, depois o cego falou baixinho:
- Eu também trabalho, não aceito esmola nem vivo de caridade.
Esperou, sabendo que alguém ia perguntar que é que ele fazia, e alguém perguntou, ele respondeu baixinho: fazer mesmo, não faço nada. Aí fez-se silêncio, alguém botou lenha, outro perguntou qual era então seu trabalho. Ele tirou o chapéu antes de falar:
- Meu trabalho é contar histórias.
Deixou o chapéu diante dos pés, daí falou que aquele fogo tinha lhe lembrado o seguinte caso... E contou um caso de deixar a roda tão quieta que se ouvia o fogo queimando. Depois perguntou a um daonde vinha, e contou uma história de lá, e daonde vinha outro, e contou outra história de acolá, ora fazendo a roda rir, ora fazendo pensar.
O menino veria o chapéu do cego, ali no chão, ir se enchendo de dinheiro e as bocas se enchendo de risadas, até olhos se enchendo de lágrimas; e então pode ter sido ali que o menino, sentado no chão diante do fogo, resolveu que, quando perguntassem de novo o que ia ser quando crescesse, ia ser contador de histórias.
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