No quintal da Pensão Alto Paraná, os peões acocoravam ou sentavam sobre tijolos, em redor do fogo do tacho de sabão, para esquentar os joelhos, diziam, mas o menino sabia que era para contar histórias, que ele ouvia sentado no chão. Eram peões tidos como ricos, derrubando matas para cafezais, ou caminhoneiros de café para o porto, todos com bastante trabalho e bastante dinheiro naquela Londrina Capital do Café. Alguns peões supliciavam os pés com sapatos de verniz, outros arrancavam dentes naturais para sorrir com dentes de ouro, e a eles ali se juntavam mascates com suas malas e lembranças, lavradores com seus sacos e casos, camelôs com sua lábia.

Um dia chegavam motoristas vindos de um atoleiro com fome de semana. Outros contavam histórias de posseiros, lutas por terra, e camelôs contavam lorotas, um mascate espalhava boatos.

Uma noite, trouxeram cadeira para um cego, perguntaram de onde vinha, respondeu que vinha de todo lugar, sempre procurando.

- Procurando o que, cego?

- O que sempre acho, uma roda de gente como aqui.

Aí um peão brilhoso de jóias, que sempre queria mostrar também brilho de ideia, perguntou alto:

- Cego, se tudo vem da terra e pra terra volta, e se até nós mesmos estamos aqui devido ao café que vem da terra, o que pode valer mais que a terra?

- Mas – falou o cego – que seria da terra sem a chuva? E como o café ia madurar sem sol?

Alguns riram do peão mas o cego continuou, como se olhando longe com seus óculos escuros:

- E também nada valeria a terra sem trabalho. Pois até as nossas histórias não vem do trabalho?

- Mas – o peão rebateu – e tantas histórias de amor, cego, vem daonde? O cego deu umas palmadinhas no peito:

- Pois o coração não trabalha o tempo todo? O namoro já dá muito trabalho, o noivado é uma trabalheira, o casamento é um trabalhão pra depois passar a vida trabalhando pros filhos, o amor é uma trabalhação!

Riram e até bateram palmas, depois o cego falou baixinho:

- Eu também trabalho, não aceito esmola nem vivo de caridade.

Esperou, sabendo que alguém ia perguntar que é que ele fazia, e alguém perguntou, ele respondeu baixinho: fazer mesmo, não faço nada. Aí fez-se silêncio, alguém botou lenha, outro perguntou qual era então seu trabalho. Ele tirou o chapéu antes de falar:

- Meu trabalho é contar histórias.

Deixou o chapéu diante dos pés, daí falou que aquele fogo tinha lhe lembrado o seguinte caso... E contou um caso de deixar a roda tão quieta que se ouvia o fogo queimando. Depois perguntou a um daonde vinha, e contou uma história de lá, e daonde vinha outro, e contou outra história de acolá, ora fazendo a roda rir, ora fazendo pensar.

O menino veria o chapéu do cego, ali no chão, ir se enchendo de dinheiro e as bocas se enchendo de risadas, até olhos se enchendo de lágrimas; e então pode ter sido ali que o menino, sentado no chão diante do fogo, resolveu que, quando perguntassem de novo o que ia ser quando crescesse, ia ser contador de histórias.

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