Era uma gatinha tão esperta que, por isso mesmo, era uma vez. Chamamos de Estrela e era tão pequenina quanto destemida. Chegou já encarando sem temor a cachorra muito maior e a outra gata já grande, sua irmã Lua da ninhada anterior.

Lua passou por crise de ciúme, chegando a sumir de casa durante dias, depois voltou arredia, quando Estrela já se tornara amiga de afagos da cachorra.

Enfrentando indiferença e rejeições com brincalhona insistência, Estrela fez Lua ver que tinha companheira para uma vida mais animada. E o mundinho delas parecia feliz quando chegou o jardineiro com seu barulhento cortador de grama.

Estrela sumiu. Imaginamos que espertamente entrou no carro por baixo, para se abrigar do barulho nalgum recanto do motor ou sobre pneu. Pois foi debaixo de pneu, quando o carro foi sair da garagem, que Estrela se apagou.

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. | Foto: Dalva Vidotte/ Divulgação

Quando eu reclinava no cadeirão diante da tevê, ela pulava no colo e ficava brincando de me agarrar a mão e morder os dedos. Depois subia pelo peito e olhava pertinho nos olhos, com o que parecia mistura de curiosidade e amor. Me cheirava o nariz, mordiscava o queixo, daí descia pela barriga para continuar a luta com os dedos.

Quando cansava, deitava espichada entre meu ombro e omoplata. Recebendo carinho, ronronava como se fosse muito maior.

E de repente era uma vez.

Era só uma gata, dirão – mas só nós humanos cuidamos de feridos e deficientes neste planeta, só nós criamos religiões, obras de arte, filosofias e crenças tentando entender e consertar o mundo. E só nós criamos bichos de estimação, seja a Chita do Tarzã, a tartaruga de Baudelaire, o papagaio de Robinson Crusoé, o cão que lambe a mão que estapeia, a gatinha que mordiscava meus dedos.

Perder um bicho de estimação é perder um tantão de humanidade. Pouco perde quem vê o bicho de casa só como companheiro dos móveis, mas perde muito quem vê e sente como parte viva da casa e da vida.

Vó Tiana não tinha bichos em casa, mas seu quintal cantava cheio de passarinhos, atraídos pelas suas frutas e legumes. Se alguém lhe dizia para botar espantalho, para afastar tantos passarinhos, ela dizia não, pois tudo era para eles também.

Nonna Paulina não tinha bicho de casa, o cachorro Faísca era do nonno. Mas quando afiava a faca na cozinha, os gatos da vizinhança finamente ouviam e vinham miar no telhado vizinho, sabendo que, pela janela da cozinha, ela ia lhes jogar ali os retalhos de carne.

Quanta sabedoria: assim humanamente cuidavam de bichos e passarinhos, sem ter de um dia sofrer pela sua partida.

Existirá Céu para eles? Se nossas crenças são humanas, devem servir também para todos que humanizamos. O cachorro que entristece quando entristecemos. O cavalo que estremece pronto para tudo ao toque do cavaleiro. O gatinha que deixa na foto um olhar de encanto pela vida.

Ficamos gratos, gatinha, por nos alertar da morte e, com tanta graça, nos fazer mais alegres e carinhosos. Brinque bastante com Deus, meu amor.