Quando fui me despedir, perguntei a ele se é feliz, ele coçou a testa com o punho, empurrando o boné para trás, apareceu a palma da mão escurecida de lidar com pneus. Se sou feliz, resmungou me olhando nos olhos, balançou a cabeça, não, não é feliz. Isso me confundiu, pensei que fosse responder que é feliz.

Eu tinha entrado na borracharia para consertar pneu de carriola de jardinagem, ele consertava pneu de moto. Apontou uma mesinha, ali tinha cafezinho e álcool, não o de beber, né, gracejou, depois falou sério para a motoqueira:

- De tanta pancada teu pneu entortou. Vão te dizer que tem de trocar mas dá pra arrumar, vou te dar um cartão.

Falava sem desviar os olhos do remendo na câmara de ar do pneu, eu curioso olhando, aí saiu fumacinha, ele falou sério:

- A borracha chia de brava e cola de raiva.

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. | Foto: iStock

Antes de enfiar a câmara, passou a mangueira de ar pelo interior do pneu, onde vai ficando um pozinho de borracha, ele explicou, é bom limpar.

- Mas aí ninguém vai ver – provoquei, ele respondeu sério:

- Ninguém vai ver mas eu vou saber!

A motoqueira quis pagar, ele perguntou se ela podia pagar, podia, ele passou o cartão, ela se foi e chegou um carro. Ele deu com a mão, pedindo para esperar, e me perguntou qual era o pobrema da carriola. Pode atender o carro antes, falei, ele falou não: - Carro espera que nem carriola.

Consertou rapidinho o pneu da carriola, perguntei o preço do serviço, ele falou vichi, magina se vou cobrar por isso. Então encostei a carriola e peguei cafezinho só para esticar papo, enquanto ele já consertava o pneu do carro. Pelo jeito, falei, você gosta de ser borracheiro, ele corrigiu:

- Só é borracheiro quem gosta.

Já chegava outra moto, falei que a borracharia era bem movimentada, falou que é assim o dia inteiro:

- Chega um depois do outro, difícil três ao mesmo tempo, então parece que Deus é que organiza a fila.

Perguntei como aprendeu o ofício, contou que foi com um tio:

- Me botou de aprendiz numa concessionária. O salário, ó, salarinho, mas aprendi direitinho como fazer tudo certinho.

- Tudo o que?

- Tudo tudinho, em cada tipo de pneu cada tipo de problema (falou certinho) tem um jeito certo de resolver. Foi a minha escola, durou um ano, aí pedi as contas, peguei o que tinha guardado e as férias, financiei as ferramentas mas já tá tudo pago e ainda consegui empregar um irmão.

Mas não resisti perguntar da motoqueira: e se ela não pudesse pagar como ele perguntou? Ah, respondeu ele com naturalidade, pagava outro dia. Mas, insisti, ele ao menos anotaria a dívida? Ele riu dizendo não, não tinha tempo pra isso. Eu confio, falou firme, e entendi que é um jeito de investir em gente que voltará ali por receber confiança.

Foi então que lhe perguntei se é feliz, e ele primeiro disse que não mas já emendando:

- Não sou feliz não, sou muito feliz.

Voltou para seus pneus e eu também fiquei feliz de conhecer alguém feliz, ou melhor, muito feliz.