Vou despencar – dividir em pencas – um cacho de bananas, e, por preguiça de ir pegar faca, uso o facão; resultado: dois cortes nos dedos. Lembro então do nonno José:

- Cada trabalho tem a ferramenta certa.

Logo depois, para não ir buscar alicate, tento desentortar arame com os dedos, mais um corte. Aí lembro do colega de escola primária morto de tétano por pisar descalço em prego enferrujado, então vou lavar a mão e fazer curativo. A ferramenta errada pode ser até fatal, e dá mais trabalho do que o trabalho de buscar a ferramenta certa.

Amo minhas ferramentas até porque nunca erram, eu é que erro com elas. Além de serem super-extensões de nossos braços e mãos e dedos, nos possibilitando fazer coisas que espantam o mais esperto dos macacos, são fontes de prazer e orgulho.

Não dependemos de ninguém para nos dar o prazer de fazer ou consertar com as próprias mãos, graças às ferramentas. O primeiro ato humano terá sido com ferramenta. O primeiro a usar um pau como alavanca, nem deve ter acreditado quando a rocha rolou, com isso decerto já se tornando o chefe da tribo. E também transformou o pau em cacete, pois que são as armas senão ferramentas de guerra? Davi derrotou Golias não com lança ou espada mas com uma funda, uma tira de couro lançando uma pedra. Por isso digo ao neto, atualizando o que disse o nonno:

- É preciso usar direito a ferramenta certa, seja um martelo ou um celular. O martelo pode te macetar o dedo, e o celular, tão ligado no mundo, pode te afastar da vida.

Faca da Vó Tiana
Faca da Vó Tiana | Foto: Dalva Vidotte/ Divulgação

A funda de Davi faz lembrar que ferramentas são primas não só das armas mas também dos utensílios, como a faca herdada de Vó Tiana. No dia de seu velório, eu com doze anos, simplesmente peguei para mim a faca com que ela cortava dos bifes ao cural, a lâmina recurvada de tanto uso, o cabo artesanal de osso, uma relíquia do Brasil rurbano.

Desde então aposentada da cozinha, essa facavó está comigo há quase sessenta anos, separando páginas ou abrindo envelopes, sempre aqui na escrivaninha, onde me viu escrever os primeiros contos, me vê escrever esta crônica e é como se Vó Tiana continuasse comigo. Um utensílio afetivo.

E a furadeira elétrica então? Com ela furei madeiras e paredes, pendurei tantos quadros em tantas casas que passaram mas ela também continua comigo, germanicamente eficiente e ainda em sua velha caixa original! Mas outro dia enguiçou e procurei conserto, esperando até nem encontrar pois sua fábrica fechou e reabriu e o mundo mudou tanto, mas que surpresa: não só achei oficina como ela se viu entre furadeiras irmãs. Ah, disse o oficineiro, essas furadeiras são assim, passam de pai pra filho e até de avô pra neto. Então senti orgulho da minha furadeira, como quando com ela fiz um canil com casinha para a cachorra e recebi elogios até do carteiro. Mais que uma furadeira, é um símbolo de eficiência e autoestima.

Conforme Ortega y Gasset, o homem é o homem e sua circunstância – e, acrescentemos, suas ferramentas, do canivete ao satélite.