“Está cego, juiz?”, “Não entendeu ou ficou surdo?”, “Estou sem pernas para conseguir finalizar tudo isso!”, “Você é retardado ou o quê?”, “Desculpa de aleijado é a muleta”, “Fala besteira e agora fica mudo?”, “Vai me ajudar ou virou maneta?” Essas e outras expressões do tipo são usadas o tempo todo, mas representam o preconceito e a discriminação contra pessoas com deficiência. E para nomear tudo isso foi cunhada a expressão capacitismo.

O assunto voltou a ser discutido após uma das propostas da redação do vestibular da UEL (Universidade Estadual de Londrina) trazer um texto adaptado da FOLHA sobre o capacitismo.

Segundo a pedagoga Martinha Clarete Dutra (uma das entrevistadas na reportagem da FOLHA), o capacitismo compõe a relação de expressões que traduzem a desigualdade estrutural de nossa sociedade terminadas em ismo ou fobia, tais como: machismo, sexismo, racismo, xenofobia, aporofobia, homofobia, transfobia, lesbofobia. A palavra já consta no Volp (Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa), mas continua ausente de muitos dicionários.

"Eu fiquei extremamente feliz com o fato de o capacitismo virar tema de redação no vestibular, com o sentimento de que nós podemos continuar lutando. Não, porque foi um texto nosso, mas pelo fato de um tema como esse ganhar essa relevância. Instigou uma juventude, que até aqui passava ao largo do tema, e agora vai começar a prestar muito mais atenção nisso. Trata-se de uma reflexão civilizatória necessária", ressaltou a pesquisadora em Educação.

PADRÃO CORPORAL

Dutra, que é cega, ressalta que o capacitismo representa a crença na existência de um padrão corporal, chamado corpo normatividade. “Ao se distanciar desse padrão estabelecido, uma pessoa é considerada incapaz ou inapta para realizar inúmeras atividades individuais e sociais. A expressão corpo normatividade promove o apagamento da pessoa com deficiência, e reduz esse sujeito a atributos determinados, com base na sua compleição física, intelectual ou sensorial, o que é essencializante.”

Ela reforçou que não raramente uma criança é identificada por tais rótulos: aquele menino com autismo, aquela menina surda, cega, com Tdha, cega, paraplégica, dentre outros. “Esse modelo forja-se na falta e não na possibilidade, na potencialidade. Na perspectiva capacitista, a criança, o adolescente, o jovem, o adulto ou idoso com algum tipo de deficiência são desumanizados e estigmatizados”, reforça Dutra.

Dutra trabalha na secretaria municipal de Educação de Londrina, no setor de mediação e ação intersetorial. “Eu coordeno uma área responsável pelo enfrentamento à evasão e à violência contra a criança e adolescente. Nessa formação que ministro para os profissionais da rede, eu também tenho sido chamada pela secretaria para tratar dessas questões vinculadas ao direito à educação e da pessoa com deficiência.”

Quando o ano letivo deste ano iniciou, ela ofereceu formação para mais de 5 mil profissionais da rede. “Nós somos pessoas inseridas no mundo e essa inserção nos forja, onde quer que estejamos, seja na família, seja no trabalho, seja no lazer, nas relações afetivas, nós, sem dúvida nenhuma, somos atravessados pela cultura do nosso tempo, não é isso? Então o capacitismo é parte desse processo.”

Sobre a questão do capacitismo nessa área, a especialista observa que há uma inversão da lógica. "A escola deveria identificar as barreiras que a criança com deficiência poderá encontrar e eliminá-las para que ela tenha condições de igualdade. Mas o processo é inverso. A escola se preocupa em dizer o que falta para aquela criança, e isso é o capacitismo.” Ela explicou que realiza um trabalho para mudar essa concepção social. “Todas as crianças têm direito à educação, sem qualquer exceção. Agora, quando uma criança tem direito ao direito, efetivamente? Quando ela tem as condições favoráveis de participar e aprender plenamente.”

Imagem ilustrativa da imagem Juventude vai começar a prestar atenção no capacitismo
| Foto: Folha Arte

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'OLHEM ALÉM DA DEFICIÊNCIA'

A influenciadora Leila Donária, de Londrina, possui uma conta no Instagram com o seu nome, que também é chamada “Maternidade Atípica e Adotiva”. Ela revelou que foi transformada por conta do nascimento do seu filho Gabriel, o Gabinho, hoje com seis anos, e que possui uma síndrome rara, e também pela adoção de sua filha Bia. “Eu era mãe de primeira viagem, e o meu filho diferia do que eu havia idealizado, com uma síndrome rara. Eram tantas incertezas, com médicos, hospitais e no meio disso tudo, eu fui descobrindo que eu também tinha que lidar com o capacitismo", revela. "Eu comecei a olhar para mim, para as minhas atitudes antes do Gabinho nascer, e percebi o quanto eu havia sido capacitista . Quantas vezes eu vi mães que estavam com os seus filhos com deficiência e eu pensava, ou às vezes até falava ‘Coitada dessa criança. . Eu não conseguia enxergar as potencialidades daquelas crianças."

Segundo Donária, a decisão de “expor a sua vida foi para ser um canal para que outras pessoas não façam o que eu já fiz ou que não façam o que as pessoas têm feito comigo e com o meu filho”, detalha, citando como exemplo a a observação de uma mulher ao saber que ela tem um filho com uma doença rara. “Essa pessoa virou para mim e falou: ‘Nossa, Leila, eu sinto muito por você e pelo seu filho.” , lembra.

Leila Donária com Gabinho: "É preciso que todos entendam que a deficiência é apenas uma das inúmeras características do meu filho"
Leila Donária com Gabinho: "É preciso que todos entendam que a deficiência é apenas uma das inúmeras características do meu filho" | Foto: Maria Luiza Hoffmann - Divulgação

Foi nesse momento que Donária respondeu. “Não sinta muito. Minha maternidade não é infeliz. Quando você diz eu sinto muito, você está subestimando a capacidade do meu filho e ele tem inúmeras potencialidades", lembra, ressaltando que já estava preparada para responder dessa forma, contudo demorou para criar força, porque no começo sofreu com o preconceito. “Há um momento em que a gente cria força e naquele dia foi assim. Foi um marco para mim.” Essa pessoa se desculpou. “Ela falou que nunca havia pensado por esse lado.”

“É preciso entender que toda a existência importa. É preciso que as pessoas olhem além da deficiência. É preciso que todos entendam que a deficiência é apenas uma das inúmeras características do meu filho.”

Ela soube que o capacitismo havia se tornado tema da redação da UEL por intermédio de seguidoras de seu perfil no Instagram. "Elas me mandaram isso e eu achei incrível. Teve até uma vestibulanda que falou que devido ao meu Instagram teve um bom desempenho na redação. Eu achei fantástico. Esse preconceito existe há tanto tempo, mas ainda é tão pouco falado. Um quarto da população brasileira possui algum tipo de deficiência, mas você não vê esse percentual quando você vai a um shopping, por exemplo. Eu não vejo um quarto das pessoas com deficiência entre os que estão à minha volta e olha que eu convivo com muitas pessoas com deficiência. Eu me faço essa pergunta. Cadê esse pessoal?"

Marcio Rafael, técnico de goalball:  "Não é questão de superação, é treino, muito trabalho e dedicação"
Marcio Rafael, técnico de goalball: "Não é questão de superação, é treino, muito trabalho e dedicação" | Foto: Roberto Custódiio

NÃO É SUPERAÇÃO, É TREINO

O londrinense Marcio Rafael, técnico da equipe local de goalball do instituto Roberto Miranda, é também auxiliar técnico da seleção brasileira feminina. Ele fez parte da equipe que venceu, recentemente, o Campeonato das Américas. E ressaltou que a pessoa com deficiência possui suas características individuais como qualquer outra pessoa. “Cada um tem o seu jeito de ser e busca, dentro da sociedade, o seu desenvolvimento pleno."

"Eu sou auxiliar técnico da seleção brasileira de goalball e ali é um esporte de alto rendimento. A gente busca medalhas paraolímpicas, títulos mundiais. Não é questão de superação. É treino. É muito trabalho e muita dedicação. As pessoas com deficiência são aquelas que possuem dificuldades como qualquer uma”, ressaltou.

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