O Brasil possui mais de 45 milhões de brasileiros com algum tipo de deficiência. O levantamento é do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) e corresponde a quase 25% da população do país. Mesmo com todo esse contingente de pessoas, ainda há muito discriminação. Esse preconceito é definido como capacitismo, expressão na língua brasileira que se refere às ações e expressões que os inferiorizam. O termo é pautado na construção social de um corpo padrão perfeito denominado como “normal” e da subestimação da capacidade e aptidão de pessoas em virtude de suas deficiências.

Martinha Santos, pesquisadora e educadora:  "Não é o fato de eu ser cega que me dificulta a vida. Quem institui a barreira que me coloca em desvantagem em relação à outra é a sociedade”
Martinha Santos, pesquisadora e educadora: "Não é o fato de eu ser cega que me dificulta a vida. Quem institui a barreira que me coloca em desvantagem em relação à outra é a sociedade” | Foto: Roberto Custódio

A pesquisadora em Educação, Martinha Clarete Dutra dos Santos, foi diretora de Políticas de Educação Especial da secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão do Ministério da Educação. Para ela, as formas de manifestação de preconceito de discriminação e de violência no capacitismo se comparam ao machismo, ao racismo, à lesbofobia e à homofobia.

Doutora em educação pela Unicamp, Santos vem estudando o tema há anos. “O capacitismo parte do pressuposto que existe um padrão de normalidade e quem não estiver neste padrão sensorial física intelectual auditiva é uma pessoa incapaz”, destacou. Segundo ela, o capacitismo reduz as pessoas a algum estado de invalidez e deixa de reconhecer a plenitude daquela pessoa e todas as suas possibilidades. Com isso a pessoa se isenta das suas responsabilidades perante a sociedade porque o que dificulta a vida de uma pessoa com deficiência são as barreiras. “Não é o fato de eu ser cega que me dificulta a vida. Se eu tenho acessibilidade, a cegueira passa a ser uma das minhas características e não significa que eu vá ter dificuldade. Quem institui a barreira que me coloca em desvantagem em relação à outra é a sociedade”, apontou.

“Eu sempre viajo sozinha e uma vez fui fazer o check-in e a pessoa perguntou quem estava comigo. Ela pressupôs que eu não poderia ter autonomia para viajar sozinha. Me perguntou quem é que me vestia. Eu respondi que eu não era uma criança de dois anos para que alguém me vista.”

'RELIGIOSIDADE'

A educadora explicou que o capacitismo também pode ser manifestado na forma da religiosidade. “Muita gente diz que vai rezar para Deus curar e melhorar a vida, como se aquilo fosse alguma coisa que a pessoa pudesse melhorar. Mais do que isso, ela te afronta porque ela invade a tua intimidade”, apontou.

PRECONCEITO LINGUÍSTICO

Ela também reclama do preconceito linguístico utilizado de forma indiscriminada por boa parcela da população. “Quando a pessoa vai xingar um governante o que diz? Que ele é um autista. Que ele é surdo e não escuta o povo. Que ele é cego ao não ver os problemas. Por que a cegueira tem que ser o sinônimo de ignorância?”, questionou. “Uma sociedade democrática, justa e igualitária deve refletir isso na sua forma de comunicação. Eu não devo dizer que a pessoa está na lista negra, para mencionar que é onde eu registro as coisas ruins, ou que mulher ao volante é perigo constante. Ou dizer que uma atividade ruim é um programa de índio, menosprezando o indígena.”

Santos observou que, muitas vezes, as pessoas dizem: “Olha, ele é cego, mas trabalha. Ela é deficiente física, mas casou.” Santos ressaltou que essa conjunção adversativa exprime a contrariedade e não é a exceção. “Uma pessoa deficiente física não pode casar? Um cego não pode trabalhar?”

Ela ressaltou que inclusão não é conjugar igualdade e diferença. “Eu tenho direito a ser igual quando a diferença me inferioriza e tenho direito de ser diferente quando a igualdade me descaracteriza.”

AMBIENTE ACESSÍVEL

A pesquisadora em Educação, Martinha Clarete Dutra dos Santos, afirma que promover um ambiente acessível e com tecnologia assistiva é responsabilidade do poder público e da sociedade como um todo. Segundo ela, a tecnologia assistiva mais completa é a do iOS, da Apple, mas questionou quantos possuem condições de adquirir um equipamento desses. “Tanto para uma prancha de comunicação alternativa quanto para um uso de implante coclear, para Libras, para voice over, que é o recurso que eu uso, é maravilhoso porque não dá nenhum tipo de erro."

“A gente precisa de uma política pública de disponibilização de recursos de tecnologia, porque isso é básico para autonomia”, afirmou. “Nós fizemos no Ministério da Educação, e eu fiz parte dessa equipe, que construiu a base legal e construiu a política pública para isso. Claro que esse atual governo não tem interesse nisso, então cessou o financiamento”, apontou Santos.

Imagem ilustrativa da imagem Eliminar o capacitismo é desafio para a sociedade
| Foto: Folha Arte

ROTARY CLUB PCD

Segundo a presidente do Rotary Club de Londrina PCD (pessoas com deficiência), Luci Maria Lima, as pessoas utilizam expressões como superação para elogiar a pessoa com deficiência, o que é errado. “Acaba sendo ofensivo. Quando você fala que o esporte paralímpico é um exemplo de superação é um capacitismo. O esporte paralímpico é de alto rendimento igual ao esporte convencional. Os atletas treinam arduamente para aquilo tanto quanto um atleta convencional”, explicou. Lima, por exemplo, já foi atleta da paracanoagem e agora está praticando o tênis para cadeirantes.

Ela explicou que discutir o capacitismo no Brasil é um assunto novo e serve para tirar alguns rótulos. “Eu falei esse ponto do esporte porque acho super válido tratar as pessoas pela capacidade dela por igual e não porque ela é cadeirante ou por causa da deficiência dela. O tratamento deve ser pela capacidade dela de viver em sociedade de maneira igualitária”, apontou.

Lima ressaltou que a condição de PCD não é motivo para alguém sentir dó e falar que a pessoa é coitadinha. "Eu levo uma vida que a minha capacidade pode me permitir e aproveito tudo dessa capacidade”, resumiu. Ela afirmou que o capacitismo é histórico na sociedade e vem sendo passado de geração em geração. “Essa questão do coitadismo é muito grande. Está enraizado e se tornou uma coisa cultural”, destacou.

ADQUIRIR CONHECIMENTO

A forma de evitar isso, segundo ela, é adquirir conhecimento. “Você deve procurar conhecer a história da pessoa, o que é uma pessoa com deficiência, estudar o que é uma deficiência física, uma deficiência intelectual e uma deficiência múltipla”, recomendou.

 Luci Maria Lima, presidente do Rotary Club de Londrina PCD
Luci Maria Lima, presidente do Rotary Club de Londrina PCD | Foto: Roberto Custódio

“Alguns termos usados popularmente são desnecessários. A pessoa pode estar passando por deficiência momentânea. Uma mulher que está grávida, por exemplo, e que não está conseguindo dormir ou está com muito enjoo ninguém fala ai que dor, coitadinha. Uma PCD pode ter nascido com deficiência ou adquirir a deficiência ao longo da vida, mas há pessoas com deficiências momentâneas, ou seja, alguém que fez uma cirurgia e precisa usar uma muleta ou uma cadeira de rodas, e a sociedade não olha isso”, detalha. No caso de Lima, ela teve a perna amputada por um acidente de trânsito. “Em outubro irá completar 14 anos desse acidente”, relatou.

O Rotary Club de Londrina PCD, criado em fevereiro de 2020, foi o primeiro do mundo voltado para pessoas com deficiência. “Estamos aqui para atuar com as entidades e com o poder público para trazer soluções e ideias para melhorar a qualidade de vida das pessoas. Depois daqui foi montado o Rotary Club Acessibilidade, em Curitiba, e um semelhante em Chicago foi montado este ano.”

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