Assim como em outros espaços, o assédio, o preconceito e a violência contra a mulher também se fazem presentes no trânsito. Para que o assunto se tornasse alvo de discussão e reflexão, uma situação bastante grave teve que vir à tona nas redes sociais. Em Palmas (Centro-Sul) a ciclista Andressa Lustosa, 25, sofreu um acidente após ser assediada. O fato aconteceu no domingo (26), quando ela pedalava pelas ruas da cidade e um veículo com quatro homens se aproximou. Um deles, que estava no banco do passageiro, colocou o braço para fora e passou a mão em Lustosa, que se desequilibrou e caiu. Ela sofreu lesões em várias partes do corpo. Câmeras de segurança da via captaram o momento do assédio e as imagens foram compartilhadas pela vítima, tendo repercussão nacional.

"Hoje, pedalo muito mais durante o dia por questões de segurança”, conta Patrícia Oliveira
"Hoje, pedalo muito mais durante o dia por questões de segurança”, conta Patrícia Oliveira | Foto: Arquivo pessoal

Em Londrina, mulheres ciclistas relatam que o assédio é comum e também se sentem inseguras no trânsito. Patrícia Oliveira, 37, conta à FOLHA que carrega um spray de pimenta. “Ganhei do meu irmão para que eu tenha uma pequena proteção. Eu pedalava muito à noite, pela avenida Robert Koch (zona leste), e passei por muitas situações de importunação sexual, com abordagens de homens que estavam nas ruas, dirigindo ou pedalando também. Até parei de ir. Hoje, pedalo muito mais durante o dia por questões de segurança”, afirma a analista de licitação, que começou a pedalar há quatro anos como esporte, mas hoje tem a bicicleta como principal meio de transporte.

'COISA PERVERSA'

A arquiteta e urbanista Camila Silva de Oliveira, 45, também utiliza a bicicleta para os deslocamentos na cidade e diz que “além dos desafios no dia a dia que os ciclistas enfrentam, como a falta de segurança no trânsito, pista adequada para circular e locais seguros para estacionar, as mulheres em geral ainda têm que encarar situações de assédio”.

Sendo assim, Oliveira comenta que o caso de Andressa Lustosa, em Palmas, não foi uma surpresa. “A gente sabe que essas situações são muito comuns, acontecem todos os dias, mas o que impactou é que houve um registro visual disso. Ver a cena causa um impacto maior e, ao mesmo tempo, é bom para divulgar o que acontece no dia a dia, mas que ninguém vê”, ressaltou.

Oliveira lembrou ainda que o vídeo trouxe à tona uma situação sofrida na adolescência. “Eu estava andando na rua de casa, a pé, e um carro fez exatamente isso. Se aproximou e um homem passou a mão na minha bunda. É uma coisa perversa e, em muitos casos, quando a gente revida somos ameaçadas”, afirma.

REFLETE O COMPORTAMENTO

Para a administradora Camila Tabosa, 32, as ruas refletem o comportamento da maioria dos homens na sociedade em geral. “Os assédios acontecem com olhares perversos, com assobios, com frases, e mesmo o que eles pensam ser elogio do tipo: ‘nossa, que linda’, não nos fazem sentir elogiadas e sim insultadas, pois é uma invasão de segurança e privacidade. É assustador ver casos como esse que colocam a vida da mulher em risco. Dá medo, desânimo e raiva, mas precisamos aprender a denunciar para que eles aprendam que existe punição para isso e que não passarão ilesos”, desabafa.

“Dá medo, desânimo e raiva, mas precisamos aprender a denunciar para que eles aprendam que existe punição e que não passarão ilesos”, afirma Camila Tabosa
“Dá medo, desânimo e raiva, mas precisamos aprender a denunciar para que eles aprendam que existe punição e que não passarão ilesos”, afirma Camila Tabosa | Foto: Gustavo Carneiro - Grupo Folha - 14-07-2020

Tabosa diz que continuar usando a bicicleta como transporte tem sido uma luta diária há cinco anos. “Meu maior medo é quando passo por lugares mais isolados. Gosto de ter o espelho retrovisor para ficar atenta a tudo. Já houve situações em que senti necessidade de mudar a rota por não me sentir segura num local ou de parar numa loja só para dar um tempo e seguir viagem. É preciso estar alerta em dobro porque assaltos podem acontecer com todos, mas além desse risco, as mulheres correm o risco de sofrer abusos”, destacou.

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'ORIENTAÇÃO É SEMPRE DENUNCIAR'

Em 2020 foi fundada em Londrina a Associação Mobilidade Ativa, com o objetivo de promover o reconhecimento do transporte ativo (não motorizado) através da conscientização e do cumprimento da Lei Federal nº 12587 de 2012, que trata da Política Nacional de Mobilidade Urbana, determinando a priorização do transporte ativo sobre o motorizado.

Um dos membros, o engenheiro civil Luiz Afonso Giglio, 43, afirma que casos como o ocorrido na cidade de Palmas acontecem diariamente e reforça a importância das denúncias. “Mas muitas acabam não denunciando. A orientação é sempre denunciar o fato, mesmo que seja difícil identificar a pessoa. Busque testemunhas e um local seguro para tomar as devidas providências”, aponta.

De acordo com a associação, as mulheres representam apenas 25% do quantitativo de ciclistas em Londrina e pesquisas apontam que a desigualdade de gênero também é refletida nos padrões de mobilidade e escolhas dos modais de transporte.

“Portanto, segurança e infraestrutura são elementos essenciais. Estamos trabalhando em campanhas educativas e de incentivo junto à CMTU (Companhia Municipal de Trânsito e Urbanização) para fortalecer a conscientização de modo a refletir no cotidiano do trânsito”, afirmou.

CRIME GRAVE

Na terça-feira (28), um homem foi preso pela Polícia Civil de Palmas, suspeito de envolvimento no caso da estudante de direito Andressa Lustosa. O delegado responsável pela investigação, Felipe Souza, explicou que a identificação dos ocupantes foi possível pela ajuda da população. “Fizemos a prisão de um dos indivíduos e as investigações estão em andamento. Vamos ouvir outras testemunhas, mas o motorista e o passageiro serão indiciados por crime de importunação sexual e lesão corporal porque tinham ciência e controle da ação”, disse, em vídeo gravado pelas redes sociais.

O crime de importunação sexual é grave e prevê de um a cinco anos de reclusão. Mas, de acordo com o delegado, os envolvidos poderão responder por outros crimes, considerando que entre eles havia um menor de idade e que todos estavam embriagados. Ele também citou que alguns dos envolvidos possuem passagens pela Polícia, mas não deu detalhes.

Em junho de 2021, a BBC News Brasil abordou a questão do assédio sexual de motoristas sobre mulheres ciclistas, contando a situação enfrentada por NanW Beard, no País de Gales. Ela foi assediada com comentários obscenos de um motorista que parou o veículo ao seu lado, em uma rua movimentada de Cardiff.

O caso também ganhou repercussão, de acordo com a reportagem, que citou ainda uma pesquisa realizada no País de Gales, cujo resultado mostra que 77% das mulheres se sentem inseguras ao pedalar e pedem melhorias na segurança.

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