É mais uma manhã ensolarada de fim de ano em uma cidade do interior do Paraná no início dos anos 1990. Pelas ruas, fuscas, monzas e passats trafegam com adesivos que trazem números e cores dos candidatos a prefeito e vereadores. Pedestres desfilam com suas camisas e bonés com os slogans “Por amor a Cidade Tal”, ou “Cidade Tal quer Mudança”, brindes que depois da eleição vão virar pano de chão.

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Eles andam atentos aos obstáculos. Em frente, um cavalete; dois passos ao lado, um “cabo eleitoral” segura uma bandeirona e grita aos berros para tentar abafar um adversário, na calçada do outro lado da rua. A sarjeta forrada de santinhos esconde o perigo de um pé acabar torcido dentro de uma boca de lobo. Na feira, candidatos distribuem beijos em crianças e promessas para adultos, sem saber se poderão cumpri-las.

Com os populares, comem pastel e bebem tubaína. O almoço, porém, é em uma churrascaria com o deputado aliado e poucos convidados. Debatem estratégias de campanha e maneiras de levantar mais um escândalo contra o concorrente. Para o candidato da oposição, a noite será decisiva. Vai usar o microfone do showmício para expor todos os podres do adversário. A situação toma ciência das denúncias e já prepara o contra-ataque.

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| Foto: Anderson Coelho 02-11-2020

No final do dia, o comércio baixa as portas e os palcos terminam de ser montados. Aglomeração em vários pontos da cidade. Os camburões da Polícia Militar fiscalizam a distância mínima entre as concentrações. A banda show começa a tocar e, entre uma música e outra, o slogan da campanha é enfatizado. Toda a cidade parece estar nas ruas, seja de um lado ou de outro.

No meio da noite, conversar se torna impossível. A ordem é fazer barulho para ganhar no grito: nos decibéis que vêm do palco, dos autofalantes distorcidos das caixas de som dos carros (as famosas “caixas de abelha”), ou das baterias de fogos de artifício. Seo João volta pra casa feliz com uma caneta, um boné e uma promessa de uma dentadura “no mês que vem”.

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Chega o domingo decisivo. Os eleitores recebem as cédulas de papel. Preenchem à mão, às vezes com votos de protestos, escrevendo nomes inusitados. A cédula é colocada na urna. Dos colégios, os malotes são levados para o ginásio de esportes para a contagem que deve prosseguir madrugada adentro. Comemoração mesmo, só na segunda-feira, numa agilidade de fazer inveja às eleições americanas atuais.

Todo o processo eleitoral tradicional, marcado pelo corpo a corpo e muita gente, no entanto, começou a ser transformado pela tecnologia. O primeiro marco foi a adoção da urna eletrônica, pela primeira vez nas eleições municipais em 1996, quando ficou restrita a apenas 57 cidades brasileiras, contingente de 32 milhões de eleitores. Quatro anos depois, às vésperas da virada do milênio, a eleição já estava totalmente informatizada.

Mas a revolução viria mesmo com a popularização das redes sociais. Os santinhos se tornaram digitais e as palmas no portão foram substituídas por mensagens no “face” e no “zap”. A “mentirada” ganhou outro nome: “feiquinius”. No ano em que o isolamento se tornou uma questão de saúde pública, as eleições em nada lembram árduas batalhas travadas nas ruas. Em reportagem especial, a FOLHA traz a relação de diferentes gerações com as eleições e mostra as transformações do processo democrático de escolha de nossos representantes.

Celso Felizardo (editor)

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Uma “brigaiada” na internet debate se é melhor o voto impresso ou eletrônico. Ou se seria o Twitter a ágora contemporânea, onde os olimpianos de Android, Windows ou iOS travam seus embates mais dedicados, aqueles que duram mais que partidas de tênis e que só terminam depois de um pandemônio digital. O “zap-zap”, então, é a nascente, a foz e o percurso de conspirações, intrigas e arranjos políticos dignos de epopeias. A tecnologia muda a forma de fazer política. A “forma”, não necessariamente o conteúdo.

Luiz Gonzaga Ferreira da Silva, 68, aposentado às vésperas da pandemia, frequentava os clássicos comícios do Parque Guanabara quando era molecão. Era show de banda, filme e muito boca a boca. Pessoalmente. “Tudo para atrair o povão e ganhar o seu voto. Com o passar dos anos isso mudou, hoje já não é permitido esse tipo de coisa, por que consome o dinheiro e facilita o desvio de verbas dos fundos partidários”.

icon-aspas *Santinho em linguagem binária

Na internet, a relação é metafísica: um grito no alto-falante se torna uma combinação de zeros e uns e nas redes os candidatos estampam a cara e seus números. Se antes os santinhos podiam ser o rosto em mãos, agora esses rostos falam e acenam por uma tela portátil. “Acredito muito que a internet pode tornar a política algo menos chato”, pensa a estudante de psicologia Julia Assis, 20, que pela primeira vez vai votar. Ânimo, ansiedade e sensatez, é assim que ela tem encarado a “responsa”. “A gente tem que tomar muito cuidado, a internet é muito perigosa. Ela tem seus pontos positivos, mas é muito perigoso a gente confiar total no que tem ali”.

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E os santinhos? Tanto para Luiz Gonzaga quanto para Julia Assis, o santinho é problemático. Luiz vê “demoninhos”: “na verdade eu tinha aversão, não gostava mesmo dos tais santinhos, eram uma aberração, um desrespeito total com a população”. Julia até vê certa utilidade na lembrança do número, carregava um na mochila inclusive, embora seja crítica da peça: “a sujeira, a poluição, acho que em 2020 a gente já deveria ter outra forma mais prática, sem poluir”. Ambos concordam que a sujeira é o maior problema da propaganda em papel.

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A pandemia amenizou o cenário das calçadas. Cada passada era uma revoada de papéis. O pedestre ao olhar para o chão pensava estar frente à propaganda eleitoral da TV: uma bateria de candidatos olhando direto para os olhos, alguns pairando por mais tempo no ar que outros, quase abrindo a boca para pedir seu voto. Para os mais jovens que vão votar, os santinhos costumavam ter uma utilidade. “Quando era criança, é claro, acredito que todo mundo tenha dado uma zoada, dado ali uma desenhadinha na cara da pessoa”, disse Julia.

As fontes de informação também variam conforme as primaveras. Por um lado, Luiz prefere conversar pessoalmente com pessoas de confiança sobre política, de forma reservada, e se informar por veículos tradicionais. Por outro, Julia personifica a “famosa militante”: vê a internet como um ambiente importante de posição, tanto para conversa quanto informação. A divergência de abordagem, no entanto, não anula o sentimento em comum: a defesa da democracia.

Bruno Codogno (estagiário)*

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“E taca-le pau”

E, nas mesmas ruas, o silêncio. Apenas o farfalhar das árvores e os pedregulhos rolando no asfalto. Em outro tempo, essas manhãs seriam embaladas por ritmos animados e versos memoráveis, os tradicionais jingles.

Não é necessário ter vivido a época para se recordar de clássicos como o Varre, Varre, Vassourinha ou o Retrato do Velho, tão presente entre as marchinhas carnavalescas. As canções ecoavam nas ruas e janelas, chegando aos ouvidos do eleitor e talvez jamais deixando suas mentes. Ao menos quando estavam à frente da urna, elas estavam lá, repetindo o número a ser digitado.

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As músicas se espalhavam pela cidade em carros de som, mas estes já não são vistos. Onde estariam eles estacionados? Onde foram parar os amplificadores? Há 25 anos, o cenário era outro. Foi quando Kiko Jozzolino entrou para o mercado de jingles. Em seu estúdio, compõe, grava e edita notas que viram identidade dos políticos. Mas a marca de 40 faixas por ano eleitoral ficou para trás frente aos 12 jingles desta eleição.

Ele lembra que, com o fim dos showmícios, os jingles já se fizeram menos ouvidos e, paralelamente à evolução tecnológica, aumentou-se a gama de pessoas capazes de produzi-los. “Tem pessoas que tratam o jingle como um produto descartável, por ele ser usado por pouco tempo, então gravam de uma maneira bem mecânica” – conta Kiko. Mas o músico se orgulha de manter os moldes tradicionais na produção de uma canção de qualidade, e não necessariamente numerosa. Afinal, o que pouco se percebe é que o desenvolvimento de um jingle pode ser muito mais trabalhoso do que de uma música comercial pois, além de soar agradável, é preciso que a ele se encaixe em um tempo e passe um recado, um verdadeiro retrato falado do candidato e suas bandeiras.

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("Taca-lhe pau Requião" é um dos jingles de campanha mais famoso do Brasil)

Mas se engana quem pensa que os jingles vão sumir dos ares do Brasil. Com a popularização da internet, a campanha só está migrando para outro meio. Para Kiko, “o jingle nunca vai cair de moda. Acho que, como toda comunicação, teve sua evolução sem perder as origens”. O próprio público já não é mais o mesmo. A verdade é que andamos passando mais tempo navegando pelas galerias do Instagram e Facebook do que caminhando pelas calçadas.

Jozzolino ainda relata que, nas mídias sociais, o jingle sozinho não basta. É preciso cobri-los com imagens, porque quem não é visto – e ouvido – não é lembrado. Mesmo sem os carros de som, os jingles ainda estão aí, reverberando em celulares e fones de ouvido. Os candidatos mudam, os ritmos mudam e as letras também. Mas uma coisa continua: o esforço para conseguir a atenção e não ser esquecido na frente da urna.

Lara Bridi (estagiária)*

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Um pequeno lembrete

"Fiia, pega a caneta pra mãe!" - Durante anos, no dia que antecedia a votação, minha mãe gritava, sentada na mesa da cozinha, de posse a um pequeno calendário no formato de um cartão de papel, que de um lado tinha o emblema do 'Bar do Vardinho' (onde ela comprava pão) e no outro lado duas linhas, uma com cinco quadros (vereador) e outra com dois quadros (prefeito). Ela gostava de manter organizado para não se perder na ‘Hora do Voto’. Meu pai não ligava tanto para formalidades, sua colinha era num pedaço rasgado de folha de caderno que ele mantinha pronto na sua oficina. Ambos sabiam que ao chegar na sessão eleitoral haveria uma lista com nomes e números de todos os candidatos, mas com a macarronada e o frangão assado de domingo esperando em casa, eles não queriam passar mais tempo no colégio que o suficiente para exercitar seu poder cívico.

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| Foto: Folha Arte

Vera Lucia Coutinho vota no Hugo Simas e uma semana antes das eleições já tem guardado o número de seu candidato. "Gosto de como é hoje, antes a política era muito barulhenta e suja, mudaram muito. Tinha bandeira para todo lado. Os papéis jogados no chão ainda podiam serem vistos semanas depois das eleições. Hoje, é mais tranquilo, o pessoal entrega os santinhos na mão. Mas meu candidato escolhi na internet". Vera Lucia conta que gosta mais de como são as campanhas hoje, para ela agora as pessoas têm mais tranquilidade para escolher seus eleitos. "O problema nas eleições hoje é outro, o povo tá acuado com a política."

O jovem Leonardo François, 18, vai votar pela primeira vez e não foi impactado por nenhuma campanha, nem na internet, em fisicamente. "Vou me preparar para escolher o candidato agora e anotar o número no celular". François não recordou que o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) proíbe celulares, câmeras, selfie e redes sociais na hora do voto.

Essas eleições também serão a primeira para Fernando Henrique da Silva, 18, e a segunda para Denilson de Souza Franco, 22. Os jovens moram em Bela Vista do Paraíso e estavam em Londrina para uma visita ao dentista. Lá, como aqui, eles contam que os santinhos não circulam mais pelas ruas e eles só foram impactados por campanhas em redes sociais. Porém, eles nem de santinhos vão precisar. A candidata escolhida é uma amiga em comum que está estreando na política e defende bandeiras com as quais eles se identificam. "O número já é certo".

O casal Geni e Aparecido Brandão votam em Cambé, mas gostariam de votar em Londrina. "A gente trabalha aqui e é afetado pela política daqui de Londrina. Mas a gente mora lá, então fica mais difícil de tomar uma decisão, de conhecer os candidatos". E, ser a colinha de alguém é uma posição de privilégio. Geni é costureira e Aparecido já está aposentado, mas continua trabalhando, vão anotar suas colinhas em um papel e levar no bolso até a urna, e esse é um lugar de destaque que, só em Londrina, 580 candidatos almejam estar nesse domingo (15). Porque hoje, como ontem, o eleitor dá valor ao número que vai levar aos bolsos. Esse pequeno pedaço de papel carrega, metaforicamente, o peso da sua esperança.

Patrícia Maria Alves (editora)

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*supervisão de Celso Felizardo e Patrícia Maria Alves (editores)

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