De um lado da linha, Aparecido Beltrame, voluntário no CVV (Centro de Valorização da Vida) em Londrina escuta diariamente o sofrimento de pessoas que ligam para o serviço em busca de ajuda, de apoio emocional. Beltrame se dedica à escuta há mais de seis anos, mas nos últimos seis meses, isto é, desde o início da pandemia do novo coronavírus, além de um aumento no número de chamadas, ele vem percebendo uma maior demanda relacionada à crise financeira.

Imagem ilustrativa da imagem Crise financeira é ‘gatilho’ para sofrimento emocional
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Economista londrinense fala sobre Covid e vida financeira

“Acredito que das chamadas que tenho recebido, os temas relacionados ao desemprego e falência, por exemplo, estão na ordem de 25%”, conta. Por dia, o CVV recebe uma média de 11.500 ligações em todo o Brasil. Os atendimentos são gratuitos e sigilosos. “Muitas pessoas já estavam desconstruídas e essa pandemia oficializou isso. Quando a pessoa liga porque perdeu o emprego, está com dificuldade de sair e procurar outro ocupação ou porque não tem vagas no mercado de trabalho, a pessoa entra em desespero”, diz o voluntário.

AUMENTO DE ATENDIMENTOS

Uma pesquisa com médicos psiquiatras de 23 estados e do Distrito Federal, feita pela ABP (Associação Brasileira de Psiquiatria), aponta que 47,9% dos entrevistados perceberam aumento em seus atendimentos após o início da pandemia. O levantamento também buscou identificar os atendimentos a pacientes novos, que apresentaram recaída após o tratamento já finalizado ou o agravamento de quadros psiquiátricos em pacientes que ainda estão em tratamento. Dos respondentes, 67,8% afirmaram ter recebido desde o início da pandemia, pessoas que nunca haviam apresentado sintomas psiquiátricos antes.

Os participantes destacaram o aumento da sintomatologia ansiosa e de quadros de depressão, ansiedade e transtorno de pânico, bem como alterações significativas no sono. Diante dessa realidade, especialistas vêm alertando sobre a chamada “quarta onda” da pandemia, que é a onda das doenças mentais.

icon-aspas “Muitas pessoas já estavam desconstruídas e essa pandemia oficializou isso"

O presidente da ABP, Antônio Geraldo da Silva, afirma que o estresse é uma reação normal que ocorre quando o organismo precisa se ajustar à uma mudança. “Quando saímos de nossa homeostase, ou seja, o nosso modo usual de funcionamento, cognitivo, comportamental e emocional, temos que usar nossos mais nobres recursos para adaptação. É nesse sentido que muitas pessoas, ao não conseguirem fazer esse ajuste, adoecem e necessitam de atendimento especializado. É de se supor que, num momento de grande mudança e necessidade de adaptação, sintomas de ansiedade, depressão e relacionados ao trauma aumentem e precisem de uma abordagem imediata”, destacou em uma publicação oficial.

SETEMBRO AMARELO

Dados da cartilha "Informando para prevenir", publicada pela ABP e pelo CFM (Conselho Federal de Medicina), apontam que 96,8% dos casos de suicídio registrados estão associados com histórico de doenças mentais, que podem ser tratadas. Essa abordagem foi um dos destaques da campanha Setembro Amarelo, dedicada à prevenção do suicídio. Segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde), cerca de 800 mil pessoas morrem por suicídio no mundo, todos os anos.

Um estudo publicado em 2013 pelo British Medical Journal e publicado no ano passado pela BBC News Brasil, estima que quase 4.900 suicídios a mais do que o esperado ocorreram em 2009, meses depois da crise econômica global de 2008, reunindo as estatísticas de 54 países, a maioria europeus. Homens jovens desempregados e homens com idade entre 45 e 64 anos foram os grupos mais suscetíveis.

icon-aspas “Ficar sem dinheiro é, para muitas pessoas, como se elas perdessem o poder, a segurança, a tranquilidade"

O texto trouxe a análise da psiquiatra Alexandrina Meleiro, da Abeps (Associação Brasileira de Estudos e Prevenção do Suicídio), ao observar que problemas financeiros impactam um público específico, que são "os desempregados e homens acima dos 40 anos que, ao perder poder de compra e redução na renda perdem status e se veem obrigados a viver com menos."

PSICOLOGIA ECONÔMICA

Uma pesquisa com mais de 10 mil trabalhadores no Reino Unido mostra que as pessoas com dificuldades financeiras são 14,6 vezes mais propensos a não dormir bem à noite; 12,4 vezes mais probabilidade de não terminar tarefas diárias; 4,6 vezes mais chances de entrar em depressão e 4,1 vezes mais propensos a ataques de pânico.

Os resultados revelam que o bem-estar financeiro está relacionado intimamente com a saúde mental e essa é um das linhas de estudo da psicóloga econômica Vera Rita de Mello Ferreira, membro do Comitê de Pesquisa da Rede internacional de Educação Financeira da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) e da Iarep (Internacional Association for Research for Economic Psychology).

Ela diz que a pandemia tem sido para muitos “uma espécie de educador financeiro, só que pela dor. Durante anos, os educadores financeiros falam que é preciso ter uma reserva de dinheiro, mas enquanto a emergência não acontece, dessa forma planetária como está acontecendo, as pessoas acham que é bobagem”.

Ela avalia que cada pessoa está atravessando a pandemia de um jeito. “Temos desde pessoas que não estão conseguindo colocar comida na mesa e aí vem o desespero absoluto e a incerteza de não saber quando tudo isso vai passar, se vai passar e que tipo de economia está por vir. Ninguém está exagerando na reação, me parece uma reação bastante fundamentada na realidade. É para ficar preocupado. É natural ter medo, não vai ser uma mágica que vai trazer as coisas do jeito que eram”, completa.

icon-aspas "A pessoa precisa buscar um conteúdo que faça sentido para ela, como consultores financeiros, além de um apoio psicológico"

Indicadores da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) Covid-19, mostram que pelo menos três milhões de pessoas ficaram sem trabalho devido à pandemia. “Ficar sem dinheiro é, para muitas pessoas, como se elas perdessem o poder, a segurança, a tranquilidade, mas também a autoestima e os homens podem perder ainda a potência sexual. Mas do que eu vejo, em geral, é que os problemas com dinheiro refletem problemas que as pessoas já têm. Não é que do nada, ao ficar sem dinheiro, as pessoas se desequilibram e ficam completamente atrapalhadas. Já tinha alguma porta aberta para isso”, afirma.

Ainda de acordo com a especialista, é importante pensar que assim como acontece com qualquer problema emocional, as pessoas com problemas com dinheiro também devem ir atrás de ajuda. “Hoje, na internet tem milhões de fontes. A pessoa precisa buscar um conteúdo que faça sentido para ela, como consultores financeiros, além de um apoio psicológico. Existem trabalhos voluntários nessas áreas. O que faz a gente se sentir mal é o sentimento de que a gente não vai dar conta e, às vezes, poder trocar ideia com outra pessoa, já redimensiona o problema e a pessoa pode perceber que é possível encontrar soluções com pequenas metas”, diz.

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