"Quanto à Constituição, discordar, sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca. Traidor da Constituição é traidor da Pátria. Conhecemos o caminho maldito: rasgar a Constituição, trancar as portas do Parlamento, garrotear a liberdade, mandar os patriotas para a cadeia, o exílio, o cemitério. A persistência da Constituição é a sobrevivência da democracia". A frase é do deputado Ulysses Guimarães, que foi o presidente da Assembleia Constituinte.

Nos idos de 1987 e 1988, o País vivenciava um momento de rompimento com o antigo regime. Esse é o ponto de partida do professor universitário, advogado e mestre em Ciência Jurídica Flávio Pierobon para abordar como se deu a elaboração da Constituição Federal que rege a nação brasileira há 32 anos - a data foi comemorada em 5 de outubro. Pierobon recorda que o regime ditatorial permaneceu ativo por 20 anos com base em uma lei de segurança nacional, "que muitas vezes se colocava acima da Constituição existente".

O discurso de promulgação feito à época pelo então presidente da Assembleia Constituinte, deputado Ulysses Guimarães, representa, segundo o professor, uma ode à Constituição, uma vez que "depositamos nela as esperanças de romper com o autoritarismo, com o atraso social e político e a colocamos na função de locomotiva do progresso". "A Constituição de 1988 nasceu para ser norte, para ser farol da política, da economia e da sociedade. Do ponto de vista jurídico, é uma Constituição que não admite ofensas, qualquer lei ou ato do poder público que a contrarie pode ser desafiado com ações que podem invalidar leis ou desfazer atos do Poder Público. É possível não concordar com o texto constitucional, é possível que haja movimentação política para alterar o texto constitucional por meio de emendas constitucionais, quanto a isso não há nenhum problema, desde que feito seguindo os procedimentos constitucionais. Mas o que não se pode é deixar de seguir aquilo que a Constituição estabelece, norma constitucional é de observação obrigatória"

Imagem ilustrativa da imagem 'Não somos um país que valoriza a Constituição'
| Foto: Gustavo Carneiro

A Constituição Federal completa 32 anos este mês. Há o que se comemorar?

Temos muito a comemorar. A primeira razão é a estabilidade. Esta é a terceira Constituição brasileira mais duradoura. Tivemos sete ou oito, depende de como se considera a de 1969. Tivemos Constituições com vigência de apenas três anos. Manter uma Constituição é o primeiro passo para o desenvolvimento nacional, como disse o deputado Ulysses Guimarães na promulgação do texto constitucional em 5 de outubro de 1988: “a persistência da Constituição é a sobrevivência da democracia".

Temos eleições livres, vamos da esquerda para a direita na ideologia política e as instituições permanecem e continuam funcionando plenamente. Passamos por dois impeachments, crise sanitária do coronavírus e mesmo assim mantivemos a Constituição vigente. Além disso, tivemos inúmeros direitos fundamentais que foram assegurados a partir do texto constitucional, tais como a constitucionalização das cotas sociais e raciais para as universidades, o reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar, a demarcação de terras indígenas, entre outros direitos fundamentais assegurados e que encontram proteção no Judiciário.

Temos uma ótima Constituição, o que não significa que tudo está ótimo, pois ainda temos uma segurança pública muito ruim e uma educação que também não vai bem, uma desigualdade social aterradora, mas esse é um processo que dura tempo, por isso é importante a manutenção e o respeito à Constituição.

Quais são as principais virtudes da Carta Magna brasileira?

É uma Constituição atual, que protege o meio ambiente, que está assentada em princípios contemporâneos de dignidade humana, de cidadania, de desenvolvimento sustentável, dentre outros. É uma Constituição pluralista, aberta para as minorias. Além disso, ampara a todos que dela precisam: os índios, os empresários, o trabalhador, os quilombolas e os grandes produtores rurais. Não é perfeita, mas é cheia de democracia e de direitos fundamentais. Não sei se serve de modelo para outros países, mas é uma Constituição que tem o mesmo conteúdo e a mesma dinâmica de constituições dos países mais desenvolvidos, como Alemanha, Itália, Espanha e Portugal. Assim, temos uma Constituição que não deve nada para outros países que servem de referência de desenvolvimento e de progresso.

Por seu enfoque inédito na garantia aos direitos fundamentais e à dignidade da pessoa humana, independentemente de cor, raça, sexo, credo religioso e idade, a atual Carta Magna é também conhecida como "Constituição Cidadã". Temos respeitado esses preceitos?

Há dois pontos aqui: um jurídico e outro social. Do ponto de vista social, somos ainda uma sociedade muito desigual, com muitos preconceitos arraigados, mas a Constituição não admite preconceitos e discriminações negativas de qualquer natureza. Há ainda um descolamento entre o que diz a Constituição e como a sociedade se comporta, mas isso ainda está ligado ao pouco tempo de vigência da Constituição. Do ponto de vista jurídico, temos melhorado as leis do País de forma gradativa e temos feito isso seguindo as diretrizes constitucionais. Como exemplo podemos citar o estatuto da pessoa com deficiência, o estatuto da igualdade racial, as leis específicas para as crianças e idosos, a equiparação da homofobia com o racismo, enfim, do ponto de vista jurídico há um constante aperfeiçoamento das leis e das decisões judiciais para que a sociedade se aproxime cada vez mais das promessas constitucionais. Mesmo que muito daquilo que esteja previsto constitucionalmente ainda não tenha se efetivado, especialmente em relação a minorias, que são grupos sociais que apresentam algum tipo de vulnerabilidade, temos evoluído. Aqui é necessário lembrar de novo de Ulysses Guimarães. Ao promulgar a Constituição ele lembrou que é “caminhando que se faz o caminho”, ou seja, é aplicando a Constituição que o plano de Estado constitucional vai se realizar. Temos ferramentas jurídicas e políticas para isso. O artigo 3º da Constituição estabelece os objetivos fundamentais do Estado brasileiro e dentre os objetivos está o de “construir uma sociedade livre, justa e solidária”, o de “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais” e o de “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. São programas de Estado que deverão ser alcançados pelas presentes e futuras gerações, independentemente de quem estiver no poder, seja governo de direita, centro ou de esquerda, mas isso leva algum tempo.

A Constituição carece de atualização? Por exemplo, no que diz respeito às questões digitais?

A resposta é sim e não. Obviamente não há previsões constitucionais para as inovações do nosso tempo. Não há como ter resposta para todos os problemas, antigos ou futuros, mas nem tudo precisa estar na Constituição. Temos um texto abrangente, com princípios que servem de norte para responder questões que ainda não foram regulamentadas ou para as quais o constituinte de 1988 não previu, para isso servem as estruturas básicas da Constituição que são os princípios orientadores do Estado de direito brasileiro - lembrando que nenhuma solução jurídica pode ser dada a qualquer problema, se tal solução ofender esses princípios. Os tribunais, em especial o STF (Supremo Tribunal Federal), cumprem também este papel de aplicar a Constituição a casos em que a legislação não é clara ou é inexistente. Interpretar o texto constitucional de forma lógica, coerente e responsável é parte da tarefa de tornar a Constituição mais eficaz. Por outro lado, há normas constitucionais que precisam ser revistas, muitas delas foram inseridas na Constituição por um assombro da ditadura militar, aliada a uma incerteza sobre o futuro. Como exemplo cito a necessidade de deliberação do Congresso Nacional para que um congressista perca o mandato mesmo estando preso e condenado criminalmente de forma definitiva. A condenação criminal suspende os direitos políticos, parece ilógico alguém não ter direitos políticos e ter mandato eletivo, mas isso não pode ser mudado por interpretação constitucional, é necessária uma emenda. Nesse ponto parece que o meio termo é o melhor conselheiro, é necessário um equilíbrio entre atualizar a Constituição e mutilar o bom texto que já temos.

São quantas emendas ao texto constitucional?

Já são 108 emendas e mais seis emendas em revisão. Tivemos a capacidade de fazer, até agora, algo em torno de mais de três emendas por ano à nossa Constituição, um absurdo. Contudo, na Espanha, cuja Constituição é de 1978 e tem apenas duas emendas constitucionais, já há campanhas pedindo uma reforma geral da Constituição, dada a quase ausência de reformas e atualização. Não há um número ideal que se possa considerar, não existe número correto, a questão está mais no simbolismo e no efeito do que na quantidade. No caso brasileiro, muitas emendas foram oportunistas e desnecessárias, como a “emenda da bengala”, que aumentou a idade para a aposentadoria compulsória dos servidores para 75 anos de idade. O principal motivo foi evitar que o governo do PT indicasse mais ministros ao STF, uma bobeira. Entretanto, as emendas permitem uma adequação do texto constitucional às novas realidades sociais, mas corre-se o risco de que a mudança constante faça com que o texto constitucional não seja implementado, já que em vez de obedecê-lo faz-se uma alteração - isso gera algum desgaste no texto constitucional e na afirmação da Constituição como norma que vincula o agir estatal. Sou um garantidor do programa constitucional, qualquer mudança na Constituição me causa bastante incômodo, especialmente quando é oportunista.

Qual a importância de lembrar a data de promulgação da Constituição?

Nesta data nasceu um novo país, completamente novo do ponto de vista jurídico. Vale notar que com a nova Constituição todas as leis tiveram de se adequar ao texto constitucional, ou as leis vigentes em 1988 estavam de acordo com a Constituição ou não poderiam mais ser aplicadas. Para além disso, a data deve ser comemorada porque se trata de um documento de emancipação, é a Constituição que nos torna cidadãos, proprietários, trabalhadores e herdeiros. Honrar a Constituição é um ato de patriotismo. Além disso, temos uma boa Constituição, elaborada a partir daquilo que há de mais atual, antenado com tratados internacionais e diversas demandas sociais, temos um imenso rol de direitos fundamentais, que configuram o reconhecimento de conquistas civilizatórias transformados em direitos. A Constituição instaura e assegura a democracia. Apenas isso já deveria ser motivo de comemoração. Se o dia 5 de outubro fosse feriado ou lembrado de forma mais ampla, talvez conseguíssemos despertar um pouco mais o senso de pertencimento e o senso de republicanismo. A Constituição deve ser vista como um documento que protege as pessoas contra o arbítrio do Estado e que assegura proteção contra infortúnios da vida, como a pobreza, a doença e o desemprego. É a Constituição que protege o patrimônio público, o meio ambiente e a livre iniciativa, assegura liberdade, igualdade e dignidade para todos. Um documento assim deve ser festejado, protegido e lembrado. É a nossa constituição, não a constituição de uma elite, de um grupo ou dos políticos., é nossa, do povo, dos cidadãos brasileiros.

Se o senhor pudesse destacar um artigo para ser ensinado desde os primeiros anos de vida a todos os cidadãos, qual seria?

Penso que o texto do artigo 5º seria o mais completo, se fosse para escolher apenas um. Ele estabelece que: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”. O preâmbulo da Constituição, mesmo não tendo força de norma constitucional, é também emblemático, vale a leitura, pois deixa claro o espírito que influenciou a elaboração do texto constitucional. O estudo da Constituição nas escolas ajudaria bastante na formação daquilo que [o jurista espanhol] Pablo Lucas Verdú (1923-2011), um autor espanhol, chamou de sentimento constitucional, algo que ainda não conseguimos despertar no povo brasileiro. Apenas os que vão cursar a faculdade de Direito acabam tendo uma melhor compreensão do que é a Constituição e de quão importante ela é para a vida em sociedade, mas isso não deveria ser um privilégio de poucos. A Constituição é para a nação e não para os juristas apenas.

O brasileiro tem a noção precisa do valor da Constituição?

Não, definitivamente, não. Há pessoas formadas em Direito que vez ou outra defendem posições autoritárias, completamente contrárias à Constituição. Mas isso é algo que deve ser construído com o tempo, não somos um país que tradicionalmente valoriza a Constituição. Tivemos várias em menos de 200 anos de existência, uma média de uma Constituição a cada 25 anos. Isso não é certo. Mas é um processo que leva tempo, há projetos de lei para a inclusão do estudo da Constituição no currículo escolar. Além disso, com tantas faculdades de Direito e com um maior acesso a cursos superiores, imagino que as próximas gerações serão mais conscientes do papel da Constituição. A imprensa livre é importante também para isso. Quando começarmos a entender que a política é importante nas nossas vidas, mas que mudanças políticas só são possíveis se amparadas na Constituição, então daremos mais importância ao texto constitucional.