O STJ (Superior Tribunal de Justiça) está analisando o Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde da ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar). Esse documento estabelece a cobertura assistencial obrigatória a ser garantida nos planos privados de assistência à saúde para os chamados “planos novos”. Os novos são os planos privados de assistência à saúde comercializados a partir de 2 de fevereiro de 1999. A medida abrange também os chamados "planos antigos adaptados" (adquiridos antes de 2 de janeiro de 1999, mas que foram ajustados aos regramentos legais, conforme o art. 35, da Lei nº 9.656, de 1998).

Atualmente, o caráter do rol é taxativo por força da lei. O julgamento sobre o tema foi retomado pelo STJ na quarta-feira (23), mas adiado novamente, por conta de um pedido de vista. O parecer vai determinar se as operadoras de planos de saúde estão obrigadas a bancar procedimentos não incluídos na lista de cobertura estipulada pela ANS. O placar está empatado em um voto a um. O reinício do julgamento, no entanto, ainda não tem data prevista.

A decisão do STJ, sobre a obrigatoriedade (ou não) de os planos de saúde cobrirem diagnósticos, procedimentos e terapias que não constam no rol de coberturas mínimas estabelecido pela ANS envolve, de um lado, as operadoras dos planos de saúde, que defendem que a lista de procedimentos da ANS seja taxativa e que apenas o rol elencado pela ANS receba a cobertura dos planos. Do outro lado estão os clientes dessas operadoras, já que há demora da agência para atualizar a lista de procedimentos e há o risco de inviabilização da assistência.

O advogado Henderson Fürst afirma que a decisão do STJ pode ter diversas consequências preocupantes, que serão diretamente sentidas por pacientes, familiares e sociedade como um todo.
O advogado Henderson Fürst afirma que a decisão do STJ pode ter diversas consequências preocupantes, que serão diretamente sentidas por pacientes, familiares e sociedade como um todo. | Foto: Arquivo Pessoal

Para o advogado Henderson Fürst, presidente da comissão especial de bioética da OAB/SP (Ordem dos Advogados do Brasil), professor de direito constitucional da PUC-Campinas (Pontifícia Universidade Católica de Campinas), professor de bioética do Hospital Israelita Albert Einstein, a decisão pode ter diversas consequências preocupantes, que serão diretamente sentidas por pacientes, familiares e sociedade como um todo.

Por exemplo, caso o rol seja apenas exemplificativo, as operadoras não terão previsibilidade e não conseguirão se organizar para atender adequadamente a todas as demandas, o que pode hiperinflacionar os reajustes, tornando inviável os valores para inúmeras famílias – aumentando a dependência e demanda do SUS. Por outro lado, com a demora da ANS para atualizar a lista de procedimentos, caso seja taxativa a sua aplicação, pacientes ficarão sem a cobertura mínima adequada às suas necessidades.

Como o sr. avalia essa tentativa de mudança do rol de procedimentos da ANS para planos de saúde de exemplificativa para taxativa?

Esta é uma questão bastante complexa, com dois lados com pontos bastante fortes. Imagine você quando faz um orçamento para aquele mês, se, de repente, você começa a ser obrigado a pagar várias contas que você não tinha se programado. Você começa a ter um déficit no seu caixa e isso se torna insustentável. Então em nenhum lugar do mundo essa lista é aberta. Ela é fechada, é taxativa. No Brasil, a ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar) estabeleceu esta lista, só que ela sentou em cima dela e nunca mais alterou. Com o passar do tempo, foi necessário que o poder judiciário interferisse e ampliasse esta lista por meio de decisões judiciais. Ou seja, se você tem uma doença crônica ou rara e precisa de algum tratamento específico que não está na lista, e normalmente não está, você judicializa e o juiz obriga o plano de saúde a custear, porque normalmente o plano de saúde nega. Por exemplo, um exame essencial para detectar diversos câncer é o pet scan e os planos de saúde sempre negam a realização dele. Na prática nós já temos já vários exames, vários tratamentos que já estão até consolidados pela jurisprudência. Eles são tão reiterados que os tribunais já têm muitas decisões nesse sentido. Em vez da ANS observar que é algo recorrente e atualizar essa lista, ela continua fazendo o quê? Nada, deixando como está. Quando a gente fala em rol ser exemplificativo, na verdade, é para ampliar e atender a uma série de outras necessidades de tratamentos e exames que os pacientes consumidores demandam.

E por que que a ANS não atualiza o rol de procedimentos?

Boa pergunta. No dia 23 de fevereiro, a ANS lançou um comunicado que está no site dela, que entrou logo após a sessão de julgamento, em que ela diz que está atuando para preservar os melhores direitos dos consumidores, dos pacientes, assim por diante. Se isto fosse verdade, ela teria total transparência no modo como essa lista é atualizada.

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Tem essa questão do direito do consumidor ou à vida. Como o sr. analisa isso? Para quem está precisando de tratamento é algo que gera desespero, não?

Sem dúvida. Para o consumidor é a esperança dele. A expectativa dele é se esforçar e eu falo isso, porque as famílias brasileiras empobreceram e se endividaram. Ele se esforça para pagar um plano de saúde possível e ter acesso à saúde rápida e de qualidade. E quando ele precisa de algo e não está contemplado, ele vai ter que custear particular. Quando ele descobre que não é custeado, ele já está no sistema de saúde, ou seja, ele já está dentro de um hospital, ele já está na fila do exame, ele já está em algum lugar, até que ele saia dali e entre no sistema público de saúde, ele já perdeu o tempo valioso para o tratamento ou para o diagnóstico. Então quando não dá pelo plano, ele se desespera e acaba até se endividando ali. Então há um abuso por parte de operadoras para cima dos consumidores neste aspecto, agora tem um ponto também, que é importantíssimo a gente considerar aqui. Toda vez que acontece uma judicialização dessa há um gasto não previsto. O que ocorre é que isso será repassado no reajuste do ano seguinte.

De alguns anos para cá, especialmente do último ano para o anterior, em que a gente tem um relatório, houve uma redução da quantidade de vidas atendidas pelo sistema de saúde suplementar. Não é só uma crise econômica generalizada no Brasil, mas é porque os preços estão impeditivos. Ninguém consegue mais pagar o valor de um plano de saúde. A inflação da saúde suplementar é muito mais alta do que a inflação econômica média do Brasil. Isso leva o consumidor a não ter mais condição de custear o plano de saúde. Então ele vai para o sistema público de saúde. Veja a complexidade dessa discussão. Caso vá para o rol exemplificativo, sem qualquer controle, sem qualquer espaço de adaptação, nós vamos ter inflações ainda mais altas em planos de saúde e uma restrição ainda maior. E os planos vão se tornar cada vez mais impeditivos. Um item de luxo, e não algo que a gente consiga ter em nosso cotidiano. Isso vai impactar o SUS, que vai diretamente absorver o cuidado de saúde dessas vidas. Então é sistêmico. Isso daqui é uma coisa muito maior do que simplesmente falar em taxativo ou exemplificativo. Nós temos várias consequências.

Então como o sr. analisa essa questão da judicialização da saúde tanto pelo SUS como pelos planos de saúde para poder ter o tratamento?

Tanto em um quanto em outro é muito nocivo para o sistema. Em países com sistemas de saúde mais estáveis, isso não existe e é impensável a possibilidade de você ter um juiz interferindo na gestão de saúde. O próprio ministro [Luis Felipe] Salomão, do STJ, contou uma experiência dele de quando ele era um magistrado de primeiro grau para internar um paciente na UTI. O médico, mais tarde, apresentou uma lista e falou que os 10 leitos estavam ocupados e pediu ao juiz qual era o paciente que teria que retirar dali. Olha o nível de interferência que o poder judiciário tem na gestão dos sistemas de saúde, seja ele público ou suplementar, sem estar adequadamente preparado para isso. Teve um tempo em que tudo era concedido pelo poder judiciário, porque ele não compreende e se o médico está falando, vai. Então, por exemplo, o SUS já custeou o tratamento oftalmológico experimental em Cuba. Não faz sentido, além de ser caro. Os tratamentos de alto custo retiram recursos de R$ 5 mil a R$ 50 mil outros casos de saúde, de questões mais simples. A gente está falando de um sistema que tem poucos recursos para serem administrados. Existem técnicas de administração, ou seja, de gestão dos sistemas de saúde e o poder judiciário, ao interferir, mais atrapalha do que ajuda, porque não tem mecanismos de compreender esses elementos de gestão. No SUS já existe uma série de filtros, do que o poder judiciário pode conceder ou não. Não é toda a coisa que o poder judiciário oferta. Já tem vários filtros que foram impostos, mas o mesmo não se diz em relação aos planos de saúde, ou seja, ao sistema de saúde suplementar. Se para o SUS o poder judiciário passou a restringir contra os planos de saúde, ele continua sendo muito virtuoso no sentido de sair concedendo tudo o que os consumidores pedem. Se de um lado há a preocupação do judiciário com a sustentabilidade das contas públicas no SUS e para melhor atingir e melhor distribuir recursos entre os pacientes cidadãos, por outro lado, essa mesma preocupação com a sustentabilidade do sistema de saúde suplementar não existe. No fundo, no fundo, é o que essa decisão está começando a se ocupar.

Se essa lista virar taxativa, o SUS deve abarcar todos esses outros casos que não serão contemplados pelos planos de saúde?

Sim, o SUS irá abarcar todos. Isso é um dever do estado, por isso que se deve regulamentar adequadamente pela ANS.

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Mas ao mesmo tempo, os recursos do SUS são limitados. Como é que fica essa equação?

Essa é uma das discussões que não têm resposta. O SUS nunca vai conseguir atingir o atendimento universal integralmente, porque os recursos são escassos. Mas com a demanda sendo alta, imagine que o tratamento mais caro do mundo, que é de atrofia muscular espinhal, custa cerca de R$ 11 milhões a R$12 milhões. Este é o mesmo valor necessário para você atender diversas moléstias de milhares de pessoas. Então você nunca vai conseguir valorar como distribuir esses recursos adequadamente. É por isso que você tem que fazer um sistema de gestão que opere na prevenção, que é muito mais barato e consegue fazer muita economia por meio da atenção primária em saúde, da saúde familiar, do médico da família e de todos os acompanhamentos preventivos. Ainda assim, isso é só uma parte da resposta. Nenhum sistema no mundo dá conta de responder a todas as demandas e a todas as necessidades. O cobertor é pequeno demais para tanto frio. Quando se reduzir a atuação da saúde suplementar por meio da taxatividade, se sobrecarregará ainda mais o SUS e o cobertor ficará ainda menor para atender a todas as demandas.

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