A demarcação das terras indígenas, a legalização do aborto até a 12ª semana de gestação e a posse de maconha para consumo viraram o pano de fundo para uma disputa de poderes entre o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal (STF). Os julgamentos do Supremo a respeito desses temas vêm gerando reações de senadores e deputados. A queda de braço ficou mais explícita na semana passada, quando o Senado aprovou um projeto de lei que institui o Marco Temporal na demarcação de terras indígenas, apesar do julgamento do Supremo que considerou a tese inconstitucional.

O STF concluiu o julgamento sobre a constitucionalidade do Marco Temporal no dia 20 de setembro, com nove votos contrários e dois favoráveis. O tribunal analisou o tema com base em um caso específico, uma ação de reintegração de posse movida pelo governo de Santa Catarina contra o povo Xokleng e a Fundação Nacional do índio (Funai). Em 2019, o STF decidiu que o julgamento deve ter repercussão geral e pautar as decisões futuras em casos semelhantes. Suspenso em 2021, o julgamento foi retomado neste mês.

Pela tese do Marco Temporal, só podem ser demarcadas como terras indígenas as áreas que estavam ocupadas por povos originários no dia 5 de outubro de 1988, quando foi promulgada a Constituição. Isso poderia causar a expulsão de indígenas das terras que ocupam atualmente, caso eles não consigam comprovar que estavam no local em 1988. Já os setores ligados ao agronegócio argumentam que não há segurança jurídica e que produtores poderão ser obrigados a deixar áreas produtivas.

A reação do Senado veio na semana passada. Na quinta-feira (28), o projeto de lei que estabelece o marco temporal foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) e pelo Plenário do Senado, com 43 votos favoráveis e 21 contrários, em regime de urgência. O projeto é do ex-deputado Homero Pereira, do Mato Grosso, já falecido, e foi aprovado pela Câmara no dia 30 de maio.

O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), já sinalizou que a disputa com o Supremo deverá continuar: no dia 14, ele apresentou uma proposta de emenda constitucional (PEC) para criminalizar o porte de drogas, independentemente da quantidade. O STF vem julgando o porte de maconha para uso pessoal e já tem cinco votos favoráveis à descriminalização.

A descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação, que também está sendo julgada no Supremo (a ex-ministra Rosa Weber já voltou favoravelmente), também gerou reações no Senado. Na semana passada, o líder da oposição na Casa, Rogério Marinho (PL-RN), anunciou que apresentaria um projeto para convocar um plebiscito. A proposta foi apresentada com as assinaturas de 45 senadores.

“Supremo é o povo”

Alinhados às pautas do campo conservador, os três senadores do Paraná, Flávio Arns (PSB), Oriovisto Guimarães (Podemos) e Sergio Moro (Podemos), votaram favoravelmente ao projeto que estabelece o Marco Temporal. Oriovisto Guimarães disse que o “Supremo poder é do povo”, o que lembrou o bordão “Supremo é o povo”, usado por bolsonaristas até o ano passado, para reafirmar que o Supremo não pode interferir em decisões do Poder Legislativo.

Oriovisto Guimarães: "Supremo poder é do povo"
Oriovisto Guimarães: "Supremo poder é do povo" | Foto: Waldemir Barreto/Agência Senado

“Não há disputa, o que há é uma definição de papéis, que precisam ficar claros”, afirmou Oriovisto, que foi empresário do ramo da educação em Curitiba e é líder do Podemos no Senado. “Em uma democracia, o supremo poder é do povo, e os congressistas, deputados e senadores, são os representantes do povo para exercer o poder em nome do povo. Os congressistas são os únicos representantes do povo, o presidente da República também é eleito pelo voto, mas os ministros do Supremo não são eleitos pelo voto. O único poder que pode fazer leis e alterar a Constituição é o Congresso Nacional, ninguém pode invadir esse poder”.

O senador Flávio Arns avalia que há “invasão” do STF nas competências do Congresso. “Isso está explicitado pelo debate que vem acontecendo na questão do aborto, na legalização das drogas para uso pessoal e na questão dos sindicatos. Todos os temas têm que ser debatidos pelo Congresso Nacional. Se houver uma discussão sobre a constitucionalidade, é atribuição do Supremo. Mas normatizar e regulamentar um assunto não é competência do Supremo, e sim do Congresso”, disse Arns, que já foi filiado ao PT.

Flávio Arns:  "Normatizar e regulamentar um assunto não é competência do Supremo, e sim do Congresso"
Flávio Arns: "Normatizar e regulamentar um assunto não é competência do Supremo, e sim do Congresso" | Foto: efferson Rudy/Agência Senado

Para o ex-juiz Sergio Moro, o Senado deu uma resposta para ministros do STF que acusariam os congressistas de “omissão” em relação a certos temas. “Alguns ministros do STF têm afirmado que acabam decidindo questões polêmicas por causa da omissão do Congresso. Então, o Senado, ao aprovar o PL do Marco Temporal, fez o que dele se espera, legislar”, disse Moro, que negou qualquer tipo de afronta à Corte. “Não há afronta ao STF, mas, sim, cumprimento do dever. Para políticas públicas complexas, como essa, é o Congresso que tem que resolver e os parlamentares, se fizerem mal o seu trabalho, podem ser substituídos pela vontade do povo na próxima eleição”.

Sergio Moro: “Não há afronta ao STF, mas, sim, cumprimento do dever"
Sergio Moro: “Não há afronta ao STF, mas, sim, cumprimento do dever" | Foto: Waldemir Barreto/Agência Senado

"Um testa o limite do outro", diz doutor em Direito

Para o advogado e doutor em Direito Rodrigo Luís Kanayama, a reação ao julgamento do Marco Temporal mostra que o Senado pretende, mais do que regulamentar a matéria, demarcar os limites de atuação do Supremo.

“É uma queda de braço entre os Poderes, mais do que a pretensão de regulamentar a matéria, ainda que ela tenha relevância”, afirmou o professor da UFPR (Universidade Federal do Paraná). “Os senadores sinalizaram que não admitem que o Supremo decida suplantando decisões do Legislativo. E os senadores favoráveis à lei sinalizaram para seus eleitores, mostrando que estão contra o Supremo. É um discurso que tem relevância para seus eleitores”.

Kanayama explica que, se a lei entrar em vigor, o Supremo poderá voltar a analisar o tema, caso haja alguma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin), já que o tribunal só age quando provocado. “É possível que o presidente (Lula) vete a lei, ela voltaria para o Congresso para análise dos vetos. Se a lei entrar em vigor, novamente teremos uma discussão no STF, mediante alguma Adin que alguém venha a propor”.

Para o especialista, é comum as decisões do STF interferirem em decisões do Legislativo. “É assim que funcionam as relações entre os Poderes. Há uma relação harmônica entre eles, mas eventualmente um testa o limite do outro. Quando o Supremo declara uma lei inconstitucional, está dizendo que a maioria do Congresso está errada, e o Congresso dá a reposta. Aconteceu no passado, com as ameaças no Congresso de limitar os poderes dos ministros do Supremo”.