A obrigatoriedade do juiz de garantias, definida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no dia 24 de agosto, foi bem recebida no meio jurídico por entidades e especialistas, mas ainda há dúvidas em relação à implantação, aos custos e a possíveis impactos no tempo de tramitação dos processos. Adotada em outros países e criada no Brasil pelo Pacote Anticrime, aprovado pelo Congresso Nacional em dezembro de 2019, a figura do juiz de garantias atua apenas na fase do inquérito e não fica responsável pela sentença.

O STF admitiu a constitucionalidade do juiz de garantias ao concluir o julgamento de quatro Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) que questionavam alterações no Código de Processo Penal (CPP) introduzidas pelo Pacote Anticrime. A implementação do juiz de garantias foi suspensa um mês depois de a lei ser aprovada, em janeiro de 2020, pelo ministro Luiz Fux, então vice-presidente do STF. Ele argumentou que a proposta não havia sido amplamente discutida.

A ideia, ao criar a figura de um juiz que atue apenas na fase de inquérito, é evitar possíveis “contaminações” por parte do magistrado que vai proferir a sentença. O juiz de garantias acompanhará apenas a fase inicial de coleta de provas, como forma de salvaguardar a legalidade da investigação e os direitos individuais dos suspeitos. O magistrado vai determinar buscas e apreensões, expedir mandados de prisão e avaliar pedidos de habeas corpus na fase de inquérito, entre outras funções.

A partir do oferecimento da denúncia pelo Ministério Público (caso a denúncia venha a ser aceita pela Justiça), a competência passará a ser do juiz de instrução, que vai instruir o processo e proferir a sentença após analisar as provas e ouvir as partes. O modelo foi adotado pela primeira vez na Alemanha, na década de 1970, e também faz parte do ordenamento jurídico de países como Estados Unidos, Portugal, Itália, Argentina e Chile.

No julgamento do mês passado, o STF deu um prazo de 12 meses, prorrogáveis por mais 12, para a adoção das medidas legislativas e administrativas necessárias à adequação dos tribunais. O juiz de garantias não poderá ser o mesmo que atuará na instrução do processo, o que poderá obrigar os tribunais a abrirem mais vagas para magistrados. Alguns setores da Justiça Federal já atuam com juízes apenas na fase de inquérito.

“Vai depender de uma organização dos próprios tribunais, as comarcas do interior poderão ter mais dificuldades”, diz o advogado Frederico Brusamolin, especialista em Direito Penal, Internacional e Europeu. “Há estudos que falam em impactos financeiros e outros que dizem que não. Esse tempo de 12 meses servirá para por isso em prática. Chegamos ao ponto em que precisamos dar efetividade ao que foi aprovado pelo Congresso e o prazo é razoável. A situação do Paraná é diferente e mais confortável em relação a outros estados em termos de infraestrutura e no número de comarcas”.

CONTAMINAÇÃO

A contaminação na fase de inquérito é algo possível, segundo a doutora em Direito e professora da Pós-Graduação da UFPR Clara Maria Roman Borges. “Existem pesquisas que mostram que juízes, de alguma maneira, decidem intuitivamente, de acordo com a convicção. Muitas vezes as provas e os argumentos jurídicos servem para fundamentar essa decisão”, diz ela. “Como qualquer ser humano, o juiz, quando toma uma decisão, busca proteger essa decisão”.

No caso brasileiro a situação pode ser agravada por problemas estruturais, avalia a especialista. “O Brasil não tem a produção de muitas provas no inquérito, tem mesmo durante o processo”, afirma a professora da UFPR. “Se o juiz atua na fase de investigação e toma contato com provas precárias produzidas no inquérito, sem o debate e a discussão entre as partes, ele já começa a proteger a decisão. Além de ele tomar contato com o fato a partir da versão acusatória, de quem acusou, que é a polícia”.

EFICÁCIA DEPENDE TAMBÉM DE PREVISÃO ORÇAMENTÁRIA, DIZ PROFESSORA DA UFPR

Para a doutora em Direito Clara Maria Roman Borges, a simples definição de que os tribunais deverão ter juízes de garantias não garante uma melhora no sistema de Justiça, mesmo porque não há previsão orçamentária. “É algo importante, tem que testar o modelo. Mas não sou entusiasta, até porque nos países da Europa não há uma eficácia comprovada”, avalia. “Já a questão orçamentária era muito mais importante que os argumentos usados para suspender o juiz de garantias. Desde 2019 tiveram tempo para pensar nisso”.

O especialista em Direito Penal Frederico Brusamolin avalia que existe a possibilidade de contaminação do magistrado na fase de inquérito, apesar de ser um tema controverso. “Não há prova empírica, porque é difícil comprovar que um juiz chegou a uma conclusão pré-determinada durante a investigação policial. O que se tem na verdade é uma tentativa de evitar que isso aconteça”, explica. “A função do juiz não deveria ser na produção de provas, ele está lá para avaliar as provas produzidas. A ideia é que se afaste dessa fase de deferir ou não medidas cautelares e pedidos de prisão e possa decidir conforme as provas”.

OAB e criminalistas apoiam decisão; magistrados criticam

O Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) cumprimentou o STF pela decisão favorável à implementação do instituto do juiz de garantias. A entidade apoiou a proposta desde 2019, quando o Pacote Anticrime começou a tramitar no Congresso Nacional. “Essa separação de funções contribui substancialmente para o fortalecimento da imparcialidade judiciária, ao mesmo tempo em que assegura uma defesa plena e robusta, condizente com os valores democráticos que norteiam a sociedade brasileira”, afirmou em nota o presidente da OAB, Beto Simonetti.

A Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas (Abracrim) defendeu a criação do juiz de garantias como forma de combater a “espetacularização do processo penal”. “Acreditamos que com a implantação do juiz de garantias teremos uma maior efetividade do devido processo legal, pois, assim se espera, que as representações e requerimentos pela imposição das medidas mais invasivas e extremas, como as interceptações telefônicas ou telemáticas, buscas e apreensões, quebras de sigilos bancário e fiscal, conduções coercitivas, prisões temporárias e preventivas, tenham um maior rigor em sua apreciação”, disse o presidente nacional da Abracrim, Sheyner Asfóra.

Uma das Ações Diretas de Inconstitucionalidade julgadas pelo STF contrárias à criação do juiz de garantias foi movida em 2019 por duas entidades que representam magistrados, a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e a Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe). Elas argumentavam que o novo instituto seria uma ofensa ao princípio da igualdade e do juiz natural. As entidades ainda não se manifestaram depois da decisão do STF. O Supremo aprovou a constitucionalidade do juiz de garantias por unanimidade, com 11 votos a zero.