As cenas da mais recente crise política do governo Jair Bolsonaro (sem partido) devolvem ao ex-juiz federal e ex-ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, o papel de antagonista exercido quando era o titular dos casos da Lava Jato. Antes o algoz do PT e dos demais políticos ligados ao esquema de corrupção flagrado na Petrobras, agora Moro tornou-se opositor ao presidente ao expor desejos nada republicanos do mandatário do País. Apesar de estarem em lados opostos, ambos dizem a mesma coisa: Bolsonaro desejava uma maior gerência na Polícia Federal. O ministro alertou na sua entrevista ao anunciar sua demissão e, horas depois, o ex-chefe confirmou ao lado dos membros do governo. O tema, que virou inquérito no STF (Supremo Tribunal Federal), sob o comando de Celso de Mello, apesar de ter implicações jurídicas, terá um resultado preponderantemente político a ser visto nas cenas dos próximos capítulos.

O próprio pedido de abertura de investigação assinado pelo Procurador-Geral da República, Augusto Aras, também é alvo de críticas que ultrapassam a esfera legal. Na análise do jurista e desembargador aposentado da Justiça de São Paulo Wálter Maierovitch, o papel exercido pelo chefe do Ministério Público Federal diante da crise é questionável. “O documento parece ter como alvo o ex-ministro Moro e não o Bolsonaro. Ao que parece, o procurador está a serviço do presidente”, critica. Em sua tese, os dois apontamentos contra Moro, crime contra honra do presidente e denunciação caluniosa, não se justificam. “São duas bobagens. A primeira porque o crime de honra teria que ser provocado legalmente pelo próprio ministro da Justiça, não se indica dessa forma. Já na questão da denunciação, dependeria de uma manifestação formal, não apenas ele falar publicamente. Não é isso o que diz o texto da lei”, explica. Outro fato que ainda precisa ser apurado é se Moro negociou com o governo uma vaga no Supremo Tribunal Federal. Acusação de Bolsonaro que ele nega com veemência.

A resposta ao pedido do Procurador Geral dada pelo decano do Supremo – apesar de acatar integralmente aos anseios de Aras, inclusive sobre os fatos ligados a Moro – pareceu trazer duros recados ao presidente Bolsonaro. Celso de Mello não costuma se furtar a criticar a postura de Jair Bolsonaro e dessa vez não foi diferente, quando ressaltou publicamente que ninguém está acima da lei. “Ninguém, absolutamente ninguém, tem legitimidade para transgredir e vilipendiar as leis e a Constituição de nosso País. Ninguém, absolutamente ninguém, está acima da autoridade do ordenamento jurídico do Estado”, destacou Mello em sua análise. Com a autorização, tanto o ex-juiz da Lava Jato quanto Bolsonaro são considerados tecnicamente investigados, apesar de Moro ser citado apenas para fazer referência ao que disse em relação ao chefe do Executivo.

Imagem ilustrativa da imagem Briga de Bolsonaro e Moro inaugura nova fase do governo
| Foto: Pedro Ladeira/Folhapress

GRAVIDADE

Se os fatos contra Bolsonaro e Moro ainda precisam ser investigados, há indícios de que os dois dizem a mesma coisa. É o que acredita o professor especialista em Direto Público da Faap (Fundação Armando Alvares Penteado) Luiz Fernando Amaral. “As declarações do presidente reafirmam o que Moro falou e isso é grave. Seu pronunciamento não foi uma defesa e soou quase uma justificativa”, opina Amaral, que chega a acreditar em ingenuidade diante da gravidade dos fatos. “É impressionante o presidente não entender como crime algo que é natural. Ele falar com normalidade algo que contraria a autonomia fundamental de um órgão do Estado”, critica. Em sua análise ainda pesa a possibilidade do crime de falsidade ideológica na assinatura da exoneração de Maurício Valeixo como superintendente da Polícia Federal. “Pode ser um erro técnico, mas precisa de uma investigação. É necessário saber se houve uma assinatura digital, alguém se passou pelo ministro da Justiça”.

Para Maierovitch, os próprios fatos já descritos pela imprensa ao longo do mandato de Bolsonaro indicam que a tentativa de interferência do presidente na Polícia Federal não é fato isolado. O desejo de tirar Valeixo do posto e de trocar a chefia do órgão em estados como o Rio de Janeiro já era conhecido. “O que ficou claro é que o Bolsonaro não queria interceder por causa do interesse público, mas para atender às necessidades de sua família e grupo político”, diz. Para o jurista, o fato criminoso existe e contraria a retidão do que é esperado de um agente público, o que pode ser indicado como um crime de responsabilidade, alvo fundamental para um processo de impeachment. “A questão é que essa falta de probidade na administração pública cabe uma ação não penal. Dependem, dessa forma, da decisão do Congresso Nacional”, explica.

CENTRÃO

Está descrito na Constituição Federal de 1988, no artigo 86, que: “admitida a acusação contra o Presidente da República, por dois terços da Câmara dos Deputados, será ele submetido a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal, nas infrações penais comuns, ou perante o Senado Federal, nos crimes de responsabilidade”. Por isso, a necessidade do governo, mais do que nunca, em criar um ambiente de governabilidade. A escolha foi por um caminho antigo, o apoio dos partidos do chamado centrão, antes tratados por Bolsonaro como “velha-política”. O fisiologismo clássico da troca de cargos e verbas por apoio. “A fragilidade e o isolamento cada dia mais evidente do presidente Bolsonaro, sempre ocupado com atritos que fabricam inimigos e distanciam-no do apoio popular, parecem justificar o motivo pelo qual ele mira o apoio do centrão”, avalia Clodomiro Bannwart, professor de Ética e Filosofia Política na UEL (Universidade Estadual de Londrina).

Na análise do cientista, há um sinal claro de que o discurso “lavajatista”, antes tão importante para o governo, agora foi deixado de lado. Há um simbolismo na demissão de Moro e a chegada de caciques como Valdemar da Costa Neto (PR) e Roberto Jefferson (PTB). “O know-how do centrão é o fisiologismo, sempre apto a barganhar sem, no entanto, assumir compromissos. Provavelmente, irão negociar cargos no governo, enquanto Bolsonaro continuará, nos passos da Justiça, sendo cozido juridicamente em banho-maria”, aponta Bannwart.

Historicamente, os pedidos de impeachment fazem parte da nossa história recente. A petista Dilma Rousseff foi julgada e condenada. Já Michel Temer (MDB) conseguiu sobreviver durante o governo – graças à sua ligação com o Congresso – apesar de responder depois por crimes comuns na Justiça. A possibilidade de uma nova fratura como essa não é impossível e deve ocupar os planos do presidente. “Ao capitanear o centrão, ou parte dele, Bolsonaro força um rearranjo de forças dentro do Congresso, mais preocupado em salvaguardar o seu governo do que propriamente favorecer pautas reformistas que marcaram seu primeiro ano de governo”, conclui o professor.