Uma mulher de pernas para o ar sempre será um quadro patético e inverossímil. Desafio os leitores a ficarem impávidos perante uma cena assim, tão inusitada. Contudo, estes dias, essa imagem correu o mundo e duvido se alguém não se compadeceu, empaticamente, ao colocar-se no lugar dessa infeliz que mergulhou na lixeira para recuperar desesperadamente o seu celular! Ocorreu na Austrália, com transeuntes estupefatos e a colega, iluminando o fundo da lixeira, facilitando a operação.

Era apenas um celular! Era tudo que essa mulher tinha. No seu celular. São tantas as questões que se associam ao fato, que merece uma pequena reflexão. Até porque, parafraseando Sócrates, “uma vida que não é examinada não merece ser vivida”! Até onde, meus caros amigos, vocês iriam para capturar o vosso celular caído e perdido? Se não se trata de vida ou morte, estamos próximos! E quando essa linha é traçada, sabemos perfeitamente como os nossos mecanismos biológicos e psicológicos são acionados em modo sobrevivência!

Imagem ilustrativa da imagem ESPAÇO ABERTO: Meu celular minha vida
| Foto: Fernando Frazão - Agência Brasil

Um mergulho na lixeira, passa a ser tão vital quanto uma boia jogada ao infeliz, caído na corredeira caudalosa! A estética do ato é engolida pela inevitabilidade da consumação da recuperação da vida quase perdida! Acha exagero? Experimente deixar cair o seu aparelho no vaso sanitário após consumar suas necessidades e constate de que você é capaz! Atire a primeira pedra, quem não conhece intimamente estes constrangimentos.

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A vida real, tal qual é vivida no dia a dia, de bancos cada vez mais virtuais e de memorização fragilizada, está ali: nesse pequeno aparelho que se tornou a extensão do que somos! Um apêndice galgando os degraus das prioridades e ocupando a poltrona do que parece essencial para que essa vida flua!

Perder um celular, mesmo em tempos de “nuvens” e backups constantes, não é decisivamente, como perder um dinheiro ou até um trem! Nele estão as nossas confidencialidades, as nossas confissões, os nossos números e as conversas que o vento não levou! Ali está a prova do crime, mas principalmente a prova da inocência! Com ele na mão, somos poderosos, visíveis e inseridos. Estamos “on”! Sem ele, ficamos nus, desprotegidos, na sarjeta da vida, “out”! Ao sair de casa, antes do espelho é nele que pensamos. No carro, já tem assento garantido e no trabalho, não são poucas as horas em que rouba a nossa dedicação!

Acontecerá, que também estes instrumentos de apoio a uma vida moderna ficarão obsoletos. Quando esse momento chegar, nós os jogaremos na lixeira dos eletrônicos e seguiremos adiante sem dó! Não por nada, mas simplesmente porque teremos na mão um outro que melhor nos atenderá. Isso, não apenas porque a tecnologia evoluiu, mas mais porque a índole capitalista da oferta compulsiva nos fará adquirir novos modelos. E quando a inteligência artificial dialogar conosco numa parceria repleta de ambiguidade e questionamentos éticos, haverá lixeira ou cemitérios IA?

A australiana infeliz que não hesitou em mergulhar numa fétida lixeira é a melhor metáfora para caracterizar cada um de nós. Se o excelentíssimo leitor se sentiu dela excluído, não sei se deva receber os parabéns. Há poucas alternativas a uma não dependência desse aparelho. Quando um dia, numa cidade portuguesa, o meu pai ouviu a voz do GPS no meu iPhone nos orientando com sotaque brasileiro, comentou: “puxa vida! Essa brasileira conhece isto melhor do que nós”! E eu imediatamente refleti, que embora tenha usado os clássicos Garmin ou TomTom, acionar o celular foi um gesto de substituição da minha própria pessoa, que não se preocupou em estudar o mapa da cidade como já fizera inúmeras vezes ao longo dos anos! Naquele momento e em tantos outros, sem os aplicativos disponíveis, minha vida não seria a mesma. Saí de casa protegido por um aparelho! Sei que soa muito ridículo e levanta questões até de índole moral, mas eu mergulharia na lixeira!

Padre Manuel Joaquim R. dos Santos, Arquidiocese de Londrina

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