A distopia chegou e se instalou no meio de nós. Ela é filha dileta da imbecilidade terraplanista com os equívocos neopentecostais e ultracatólicos estabelecidos e narrados por fundamentalistas. Seus avós são a ignorância que patrocina o desrespeito e fomenta perseguição às minorias.

Sua ascensão se deve (muito) a ausência de leitura e à cultura da intolerância, amas secas de pensamentos retrógrados e egoísticos albergados por parte considerável de nossa elite econômica – para quem Shakespeare não é senão o nome de um drink sofisticado...

Na atual quadra de nossa existência acabo de assistir ao filme de Adam McKay ("Não Olhe Para Cima") com a extraordinária Jennifer Lawrence. A película é mais seca que um dry Martine e, por sua grandeza e relevância histórica, fomenta questionamentos ainda mais profundos acerca de nosso modo de vida....

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Sou Advogado e meu ofício sobrevive da dúvida. Costumo dizer que a capacidade de duvidar separa, na advocacia, os homens das crianças. Assim é que os limites devem ser, sempre, desafiados. Questionar é preciso, conformar-se não é preciso.

Indagar circunstâncias paridas de incertezas, estabelecendo um novo o alcance nas disputas é a certeza que alimenta o devido processo. Trinta e cinco anos de profissão me ensinaram a duvidar de tudo que, dogmaticamente, possa ser redefinido – eis meu ofício!

Do alto de minha veia questionadora li, anteontem, um texto de Lenio Streck, promotor aposentado e dos nossos mais notáveis juristas. Li, reli e tresli o avassalador ‘Não Olhe para a Constituição’ que Lenio publicou no Conjur (consultor jurídico). Queria tê-lo escrito; tanto quanto e guardadas todas as não proporções, gostaria (imenso) ter pintado a Capela Sistina, feito o gol que Maradona fez contra a Inglaterra na copa do mundo de 1986 (aquele com a mão de Deus), ter capturado a atenção encantada de Carole Bouquet (para prestar ainda mais atenção à minha amada Desirée) e por aí a vida segue...

Todavia e pela proximidade, vou me fixar no texto de Lenio e, com a licença do próprio, partir de onde ele parou: Não existe democracia sem garantias processuais...

Essa é uma verdade universal que alinha a maior das conquistas civilizatórias, conforme já disse nesta Folha ao lembrar a metáfora do moleiro tedesco que não se intimidou com as investidas caprichosas do rei da Prússia que lhe queria comprar o moinho de trigo (para demolir, suposto que, segundo o rei, a construção atrapalhava a visão que o seu novo castelo merecia). O moleiro não cedeu porque ambos (ele e o rei) sabiam que haviam juízes em Berlim.

Essa certeza (ainda há juízes em Berlim) não pode ser desafiada; não se pode mitigar a universalidade desta verdade e a dúvida que alimenta meu ofício não encaminha a questão para o abalo de confiança na jurisdição, suposto que sem essa crença não há futuro nos processos e, por conseguinte, está perdido o estado de direito – talvez isso explique o negacionismo de quem tutela o estado policialesco....

Fui forjado nos enfrentamentos mantidos em processos. Minha esgrima me valeu pão e glória ao custo de adversários (uns mais, outros menos) e não creditava, até o levante terraplanista, ter cultivado inimigos.

Terraplanistas são deletérios culturais da humanidade em geral e da construção científico política que pariu o due process, em particular. Nesta medida, são o inimigo a ser combatido. Eis minha cruzada particular e eu a levo muito a sério, ainda que vivamos uma época trágica onde o negacionismo que mata é o mesmo que permite que o maior mandatário da república se dedique ao passeio de jet ski enquanto a Bahia se afoga...

Negar difere, diametralmente, de duvidar. A dúvida alimenta a evolução, a negação pela negação deságua no ódio dos ignorantes, uma vez que negando as suas vicissitudes a vida segue diminuta, nula, vazia...

Negar é não enfrentar; negar é confundir; negar é enganar; negar é construir uma política de morte que alcance, primordialmente, os mais vulneráveis, como fosse a vida uma imensa savana onde predadores aguardassem a presa doente. Eis o vero escopo dos negacionistas...

O processo, todavia, deveria valer pelo bote salva-vidas no oceano de nossas relações: ainda que as circunstâncias nos afastem, a só existência da salvaguarda vale por um farol em meio à tormenta. Essa certeza acalma as próprias diferenças...

Como bem sugere Lenio em seu fabuloso artigo, a ciência vem sendo vencida pela ignorância de uma época de poucas luzes e nenhum apego racional. Juiz que se aparta do devido processo não dá jurisdição e sim vende sua posição de julgar – seja lá por qual modalidade de pagamento...

Lembro disso quando leio o dublê de juiz e político (hoje ex-juiz Sérgio Moro) sustentar que a Lava Jato combateu o Partido dos Trabalhadores.

Sabe moro, juiz não enfrenta ninguém (de pessoas jurídicas ou físicas). Juiz dá jurisdição, aplicando a lei, sem olhar a quem julga. Não é função do juiz questionar como ficará o mundo após entregar sua prestação. Juiz ativista (notadamente pró-mercado) não é senão um larápio do estado democrático de direito.

Feliz ano novo. Desejo que a distopia faça meia volta e se retire de nosso convívio. Só assim juízes políticos que usam a toga em benefício próprio não se criarão em nossa sistemática legal.

Joao dos Santos Gomes Filho, advogado

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