Há anos numa estrada secundária do Paraná, um caminhão invadiu a pista contrária e colidiu com um automóvel ligeiro, matando o único ocupante. O motorista era um padre e na traseira do caminhão lia-se: “este veículo pertence ao Senhor Jesus”! O padre era apenas um homem a serviço de uma missão, que regressava para a sua casa. O motorista do caminhão, um trabalhador, que por algum motivo transgrediu uma lei de trânsito. Nada mais do que isso. Nenhum juízo sobre qualquer uma das vítimas.

Este acontecimento, no entanto, nos proporciona uma reflexão sobre a dimensão estrutural dos crimes e das injustiças cometidos neste país. Individualmente, na maioria das vezes, saímos isentos de qualquer responsabilização pelo menos moral (embora também às vezes legal), porque não houve nenhuma intenção de dolo. Um buraco na estrada, uma jornada exagerada de trabalho ou uma sonolência, podem estar na origem desta fatalidade, que afinal, de fatalidade nada tem!

O caminhão pertencia ao Senhor Jesus, porque na fé legítima do proprietário, assim deve ser. “A Ele a glória e o louvor” (Ef 3,21 ou Rm 11,36). O Senhor Jesus, porém, ficou sujeito, ao hipotecar o seu nome ao veículo, às deficiências estruturais de uma sociedade que, apesar de religiosa, mata e mata muito! O autor da vida foi cúmplice da morte! A bordo do caminhão, possivelmente um cristão ciente dos seus deveres que se sentia protegido pelo seu Deus.

No nosso país somos extremamente religiosos. Pelos dados de 2020, apenas 10% dos brasileiros não têm religião. O que não significa que não acreditem em algo superior! Paralelamente a este dado, convivemos com mazelas e atitudes em tese incompatíveis com os mais básicos princípios de qualquer denominação religiosa. Somos estruturalmente racistas ao pensar que pessoas negras sejam, a priori, consideradas perigosas, enquanto pessoas brancas, numa mesma situação, sejam tratadas de maneira totalmente diferente. Quando nos indignamos com cotas ou qualquer programa de compensação.

Somos também xenófobos quando tratamos bolivianos e venezuelanos como intrusos e reclamamos do tratamento que recebemos muitas vezes, além mar! Nos conformamos com a desigualdade social e buscamos as mais variadas razões para justificar o status quo. Defendemos os valores da família, mas a Covid 19 nos mostrou o quão pouco a valorizamos e estimamos. Somos radicalmente contra o aborto, mas achamos que bandido bom é bandido morto. Ou descartamos os idosos em asilos e menosprezamos os desempregados e os pobres. Aceitamos com benevolência as atrocidades do nosso político de estimação e dizemo-nos intransigentes com a corrupção. O nosso Jesus pode estar em rota de colisão com o Jesus do Evangelho. E isso só pode dar em morte. Por uma razão muito simples: O da Bíblia, está na pessoa dos que normalmente ignoramos ou maltratamos.

A maturidade de um país se mede por leis sábias que promovam direitos, deveres e fomentem a igualdade e, óbvio, pelo cumprimento dessas leis. A nossa Constituição é ótima. Já foi acusada de proporcionar muitos direitos e poucos deveres, mas até isso demonstra o incômodo com as mudanças que ela veio proporcionar! Outrossim, se requisita paralelamente uma cultura de senso de coletividade e solidariedade que vai muito além da caridade sazonal. Talvez nos falte esta dimensão da ética social. Amostra disso é a revolta de muitos quando alguém defende a justiça social. A reforma tributária, taxando grandes fortunas e a reforma administrativa, aproximando o setor público do privado, ou vice-versa, são imprescindíveis. Quem sabe assim com estas bases, Jesus não mate o padre e o padre noutras circunstâncias não mate Jesus!

Padre Manuel Joaquim R. dos Santos, Arquidiocese de Londrina