São Paulo - Uma a cada três mulheres que sofreram agressões com o uso de arma de fogo já havia sido vítima de violência em episódios anteriores.

O dado é de um relatório inédito do Instituto Sou da Paz sobre o papel da arma de fogo na violência de gênero no Brasil e aponta para falhas nos mecanismos de prevenção e de proteção à mulher vítima de agressões que podem estar perpetuando e agravando a vitimização de mulheres no país.

O levantamento usa os dados consolidados do SIM (Sistema de Informações sobre Mortalidade) e do Sinan (Sistema Nacional de Vigilância de Agravos de Notificação), entre 2012 e 2020, ano mais recente disponibilizado pelo Ministério da Saúde. Enquanto o SIM registra mortes violentas, o Sinan computa casos de agressão e outros tipos de violência que chegam à rede de atendimento em saúde.

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A violência de repetição foi detectada em 31% dos casos de agressões por arma de fogo atendidos e registrados pela Saúde em 2020. Essa tipologia indica mulheres vítimas de violência armada que reportam violências anteriores quando recebem atendimento médico ou ambulatorial.

Em 2012, esse percentual era de 23%, e o aumento dessa proporção foi mais expressivo a partir de 2018, quando chegou a 26% para, dois anos depois, bater a marca de 31%. O cenário da grande maioria dessas agressões é a própria casa das vítimas: 72% dos casos de violência armada associados à violência de repetição ocorreram dentro da residência da mulher.

"O mais emblemático desse dado é que ele indica que a violência contra a mulher pode se apresentar como um ato contínuo", avalia a advogada Carolina Ricardo, diretora-executiva do Sou da Paz.

"O nosso sistema de proteção falha ao não endereçar nem contribuir para o fim dessa violência de repetição. E cessar esse ciclo é muito importante para que os casos de violência armada não terminem em feminicídio."

Ela aponta que a proliferação de armas no Brasil tem o potencial de agravar esse quadro. Estudos internacionais já associaram o aumento da posse de armas com aumento da violência doméstica armada e de mortes de mulheres por parceiros e ex-parceiros, num contexto que se intensificou durante a pandemia da Covid-19.

Para Cristina Neme, coordenadora de projetos do Sou da Paz e coautora do estudo, "a violência doméstica tem dinâmicas próprias e a repetição é uma delas". "Quando tem uma arma de fogo neste contexto, ela se torna um fator de risco importante para a violência e para a violência letal", afirma.

Ela destaca que, enquanto os homicídios de mulheres por arma de fogo caíram quando o contexto são as ruas, eles permaneceram em patamar semelhante ou até aumentaram um pouco quando o contexto é a residência da vítima.

Na violência não letal com arma de fogo, 42% dos casos acontecem também dentro de casa. No caso das mortes, a desigualdade de gênero fica evidente: 27% das mortes de mulheres com arma de fogo ocorrem em casa enquanto, entre homens, são 11%.

Para a socióloga Wânia Pasinato, especialista em violência de gênero, o fato de 31% das mulheres vítimas de violência armada terem sido alvo de outras agressões levanta questões importantes sobre a implementação da Lei Maria da Penha (11.340/2006) e de protocolos de prevenção e proteção criados pelo poder público.

ARMAS DE FOGO

De acordo com o relatório do Sou da Paz, a arma de fogo é o instrumento mais utilizado nos assassinatos de mulheres no Brasil. Entre 2012 e 2020, em média, seis mulheres foram assassinadas por dia com arma de fogo no país.

Armas de fogo estiveram presentes em metade dos homicídios femininos no período, um tipo de violência que atinge negras de maneira desproporcional: 7 a cada 10 mortas por armas de fogo em 2020 eram negras.

Mulheres negras são mortas 2,3 vezes mais em espaços públicos do que dentro de casa, enquanto, entre brancas, a diferença é menor (1,5 vezes maior nas ruas do que na residência). O dado sugere maior vulnerabilidade da mulher negra também fora de casa.

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