Décadas antes da internet, das redes sociais e dos smartphones, o sistema de vigilância que monitorava opositores durante a ditadura militar era feito de carne e osso. Sem câmeras de celular, sem circuito de videomonitoramento ou aplicativo de mensagens, os olhos e os dedos dos agentes confeccionavam, na máquina de datilografia, relatórios sobre a rotina e as atividades dos suspeitos “subversivos”. Nas entrelinhas dos documentos sob o carimbo “confidencial”, se escondiam as perseguições, censuras e mortes impostas por um regime que aboliu a democracia brasileira entre 1964 e 1985.

Prisões arbitrárias, torturas e desaparecimento de presos políticos foram baseadas em informações de arquivos secretos, como os documentos desclassificados da CIA (Central Intelligence Agency) e do SNI-PR (Serviço Nacional de Inteligência - Paraná) em Curitiba, que estão em fase de pré-análise pelo NDPA (Núcleo de Documentação e Pesquisa Histórica) da UEL (Universidade Estadual de Londrina).

O professor Fábio Lanza e o pesquisador José Neves Junior, com parte dos documentos do projeto
O professor Fábio Lanza e o pesquisador José Neves Junior, com parte dos documentos do projeto | Foto: Roberto Custódio

De acordo com os pesquisadores, o volume ultrapassa mais de 7.000 documentos inéditos, sendo que apenas 10% já passou pelo crivo do grupo de pesquisa científica que tem o objetivo de classificar os arquivos por temas para facilitar o processo de futuros estudos temáticos. Os pesquisadores calculam que toda a catalogação e análise documental deve levar cerca de 20 anos.

“Esses documentos foram produzidos pela comunidade de agentes de vigilância. Então, eles não são relatórios sobre tortura, prisões ou inquéritos policiais militares, documentos que tinham outros objetivos dentro da forma de opressão constituída. Era como se fosse um serviço secreto que prestava apoio aos órgãos de repressão”, explicou o coordenador do grupo de pesquisa, docente do Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Fábio Lanza.

Os documentos inéditos chegaram a Londrina por meio de convênios com SNI-PR, que era responsável pela vigilância no Estado
Os documentos inéditos chegaram a Londrina por meio de convênios com SNI-PR, que era responsável pela vigilância no Estado | Foto: Roberto Custódio

Os documentos inéditos chegaram a Londrina por meio de convênios com SNI-PR, que era responsável pela vigilância no Estado e também por Santa Catarina, sendo que 7.000 documentos têm origem no serviço de inteligência regional. O acervo foi trazido pela parceria estabelecida em 2015, pela professora Miliandre Garcia de Souza, do Departamento de História, com o Arquivo Nacional e o CPDoc (Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea), da Fundação Getúlio Vargas.

Já os documentos desclassificados da CIA, que eram considerados sigilosos, fazem parte do projeto “Opening the Archives” e estão disponíveis para consulta pública no site da agência norte-americana. Os documentos da CIA são analisados e digitalizados por um grupo coordenado nos Estados Unidos pelo pesquisador James Naylor Green, docente do Departamento de História da Brown University, que esteve na UEL no final de agosto para um evento sobre democracia e golpes de estado no Brasil.

“Os arquivos estão disponíveis no próprio site da CIA. São cerca de 12.700 documentos sobre a ditadura militar no Brasil, sendo que 450 são referentes ao Paraná. Primeiro, temos o objetivo de sistematizar os documentos do Estado do Paraná dentro desses mesmos eixos temáticos dos arquivos do SNI para pesquisas de forma comparativas”, detalhou o pesquisador José Neves Júnior. O projeto foi aprovado pelo edital universal do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) de apoio à pesquisa, em 2021, e pelo edital de pesquisa básica vinculado à Fundação Araucária.

Ele lembrou que os agentes de vigilância do SNI eram, majoritariamente, compostos por militares. Já o corpo de vigilância da CIA no País tinha a participação de civis. “Esses agentes fundamentaram suas avaliações em uma perspectiva anticomunista exacerbada. Em muitos casos, identificamos processos de perseguição incentivados por inimizades ou por tentativas de alçar na carreira, seja nos arquivos da CIA ou nos arquivos do SNI.”

MODUS OPERANDI

Segundo os pesquisadores, os documentos apontam para uma “repressão tardia” no Norte do Paraná a partir da segunda metade da década de 1970, quando o governo militar discursava sobre uma suposta “abertura política”. As táticas de vigilância eram o monitoramento dos suspeitos na tentativa de reorganização do PCB (Partido Comunista Brasileiro) e infiltrar agentes nos movimentos políticos e sociais.

Entre os relatos já encontrados nos documentos estão a vigilância de um apartamento no centro de Londrina para identificar as pessoas que entravam e saíam, supostamente, em reuniões do PCB Paraná e um piquenique do movimento estudantil na cachoeira do Apucaraninha, onde agentes infiltrados foram até o local para investigar o evento.

“Em Londrina, lideranças políticas e membros do movimento estudantil foram perseguidos. Dois alunos da UEL foram presos e depois de três meses de cárcere, eles lançaram uma carta, supostamente escrita pela dupla, denunciando os males do comunismo que teria deturpado a visão deles. Curiosamente, a carta usava as terminologias da doutrina de Segurança Nacional e sua lógica de fundamentação”, relatou o pesquisador José Júnior.

ESTUDANTES

Alunos do curso de graduação de Ciências Sociais também integram o grupo de pesquisadores. A repressão contra a liberdade individual e a ausência de eleições com voto popular são apenas um dos pontos que chamam atenção de uma geração que nasceu na janela histórica da redemocratização do Brasil.

A estudante Flávia Caron Passa, do quinto semestre de Ciências Sociais, conheceu por meio dos documentos a Operação Marumbi, quando 115 pessoas foram investigadas, sendo 65 indiciadas, no Paraná, em 1975. A aluna relata que vários locais de Londrina e sobrenomes aparecem nos arquivos. Por isso, a pesquisa tem cuidado de proteger informações pessoais e identidades, conforme a LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados).

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Apenas nomes públicos são citados no processo de catalogação de eixos temáticos durante as pesquisas. Já a estudante Natália Andrade, do terceiro ano de Ciências Sociais, comentou sobre o controle político no processo de escolha de nomes ao Legislativo e como existia uma tentativa de “maquiar” esse processo com a interferência do governo militar. “Era uma ditadura que suprimiu grande parte do processo eletivo e ainda existia uma tentativa de dizer que estava tudo bem. Os documentos apontam que nas eleições para vereadores, deputados e governo, existia um controle de perto tanto dos candidatos quanto dos eleitos”, ressaltou.

O movimento negro também foi alvo do monitoramento dos órgãos de vigilância da ditadura militar. Aluna do segundo ano de Ciências Sociais, Laura Nunes disse que os arquivos analisados revelam que lideranças do movimento negro nacional eram vigiados quando estavam em Londrina. “Isso mostra que não só o movimento estudantil que foi perseguido, mas todos aqueles que de alguma forma queriam alterar as estruturas geradoras de desigualdade no Brasil”, acrescentou Fábio Lanza.

Geisel e Figueiredo

“Lenta, gradual e segura”, foi o slogan do presidente Ernesto Geisel no processo de abertura política institucional a partir de 1974, quando assumiu o poder após os “anos de chumbo” sob o comando do ex-presidente Emílio Garrastazu Médici. Se a história confirma que o processo de redemocratização, realmente, foi lento, um documento desclassificado da CIA aponta que a abertura política não foi segura.

Segundo o arquivo inédito, que o grupo de pesquisa da UEL teve acesso, Geisel e o sucessor presidente João Baptista Figueiredo, que comandava o SNI, não só tinham a concordância e conivência com o sistema de repressão, como acompanhavam a identificação, perseguição, tortura e execução de “subversivos”. O memorando, em inglês, revela que ficava ao cargo de Figueiredo, por telefone, determinar quem seria executado ou não no país.

“O presidente, que comentou sobre a gravidade e os aspectos potencialmente prejudiciais desta política, disse que queria refletir sobre o assunto durante o fim de semana antes de tomar qualquer decisão sobre se deve continuar. Em 1º de abril, o presidente Geisel disse ao general Figueiredo que a política deveria continuar, mas que muito cuidado deveria ser

tomado para garantir que apenas subversivos perigosos fossem executados. O presidente e o general Figueiredo concordaram que quando o CIE (Centro de Inteligência do Exército) prende uma pessoa que possa se enquadrar nessa categoria, o chefe do CIE consultará o general Figueiredo, cuja aprovação deve ser dada antes da execução da pessoa”, afirma o memorando.

O arquivo revela os detalhes de uma reunião realizada, em 30 de março de 1974, entre militares com o presidente Geisel, com o chefe do SNI, general Figueiredo, que contava ainda com a presença de Henry Kissinger, secretário de Estado norte-americano de Richard Nixon.

“Nesta reunião, os militares informam que em 1973, foram presas e executadas de formasumária 104 pessoas subversivas em território brasileiro e Ernesto Geisel se comprometeu a continuar a política de caça e extermínio aos comunistas no Brasil, colocando ao cargo do general Figueiredo, decidir quem seria executado”, destacou o pesquisador José Júnior.

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