As taxas de transplante de órgãos no Brasil caíram em 2020, no início da pandemia, e mesmo com os índices de infecção pela Covid-19 controlados, os números seguem baixos. Uma das razões é a quantidade de doadores, que somente neste ano teve queda de 8,6% na comparação com 2021, segundo dados do RBT (Registro Brasileiro de Transplantes) da ABTO (Associação Brasileira de Transplante de Órgãos).

Imagem ilustrativa da imagem Pandemia derruba taxas de doação e transplantes de órgãos
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Enquanto isso, a fila de espera só aumenta. Em todo o país, a alta foi de mais de 30% e cerca de 50 mil pessoas aguardam por órgãos ou tecidos, de acordo com a entidade. No Paraná, o número de receptores ativos de janeiro a maio de 2022 já é 26,95% maior do que em todo o ano passado. São 2.454 pacientes aptos para o transplante à espera de um doador.

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O levantamento da ABTO mostra queda em todos os tipos de transplantes de janeiro a maio de 2022. Os maiores percentuais foram observados nos transplantes de pâncreas e pulmão, com redução de 37,5% e 25%, respectivamente. Mas os transplantes de rim, órgão cuja fila de espera é a mais longa, também caíram, 13,8%, assim como os de fígado (11,5%), coração (12,5%), córneas (7,1%) e células hematopoiéticas (12,2%).

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| Foto: Folha Arte

No primeiro semestre de 2022, 8.469 pacientes entraram na lista de espera no país e 804 morreram enquanto aguardavam um doador, segundo a associação. “O número de transplantes de rim, coração e pulmão teve uma redução importante, chegando até a 70%. Nos transplantes de córnea, a queda chegou a 90%”, destacou a médica Ilka Boin, diretora da Unidade de Transplantes de Fígado da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e membro da diretoria da ABTO. “Em 2021, começou a melhorar, mas em 2022, no primeiro trimestre, não observamos a recuperação.”

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Além da pandemia, a baixa nas taxas de transplantes realizados também pode ser explicada pela maior recusa dos familiares em fazer a doação. Embora o índice de notificação dos potenciais doadores, de 56,7 pmp (por milhão de população), tenha caído apenas 1,7%, a taxa de efetivação da doação, de 24 pmp, diminuiu 6,9%. A quantidade de famílias que não autorizaram a doação dos órgãos cresceu 9,5% no período. Dos parentes entrevistados, 46% disseram não quando consultados sobre a possibilidade de doação dos órgãos. Já a taxa de contraindicação médica, embora ainda esteja bem acima dos anos pré-pandemia, quando ficava em torno de 14%, caiu 8,7% na comparação com 2021 e ficou em 21%. A ABTO avalia que essa queda pode ser reflexo da liberalização parcial do uso de doadores com Covid-19 atual ou no passado.

recusa das famílias

“O aumento de 9% na recusa das famílias parece pouco, mas em números absolutos é muito”, disse Boin. Fatores emocionais e a não conscientização das pessoas sobre a importância de expressar a vontade de doar aos familiares também interferem no número de transplantes. “Com a pandemia, muitas pessoas mudaram de casa, de cidade, voltaram a morar perto de parentes com quem não conversaram sobre a possibilidade de doação de órgãos. Tem uma conjunção sócio-econômico-cultural que não está normalizada porque a pandemia ainda não acabou. Por isso, a gente solicita às pessoas que voltem a conversar com suas famílias sobre o ato de doar ou não”, analisa a médica.

A diretora da ABTO cita ainda como uma das causas da queda no número de cirurgias de transplante uma questão política, que é o subfinanciamento da atividade. Profissionais e entidades do setor aguardam a publicação de uma portaria já assinada pelo Ministério da Saúde que irá regularizar o financiamento dos procedimentos para transplantes. A tabela de valores não é atualizada há uma década. “O reajuste deveria acontecer de acordo com a inflação. Os insumos hospitalares são baseados em dólar. Em 2012, o dólar estava cotado a R$ 2. Hoje, está mais de R$ 5”, compara.

A defasagem na tabela, salientou Boin, não faz com que as unidades credenciadas deixem de realizar as cirurgias, mas com a correção de preços, o número de procedimentos poderia crescer. “Se acabar o material, não adiante ter órgão disponível.”

Paraná investe em treinamento

No Paraná, dados do Sistema Estadual de Transplantes revelam uma recuperação nas doações em 2022, mas com números ainda abaixo do observado na pré-pandemia. Em 2019, a taxa de doações efetivas ficou em 43,8 pmp (por milhão da população), baixou para 41,5 pmp em 2020, caiu para 36 pmp em 2021 e, neste ano, até agora, está praticamente igual há dois anos, em 41,6 pmp.

Em todo o ano de 2019, foram 1.166 notificações que se converteram em 497 doações. No ano passado, as notificações aumentaram, totalizando 1.257, mas as doações caíram 17,10% na comparação com o último ano antes da pandemia, chegando a 412. Em 2022, os números apontam uma possível recuperação. No primeiro trimestre, das 501 notificações, 198 doações foram efetivadas.

Na macrorregião de Londrina, entre 135 doadores elegíveis em 2021, 80 doações foram autorizadas e 65 doações foram efetivadas. Neste ano, até o momento, foram registrados 68 doadores elegíveis, 41 autorizações e 33 doações efetivas.

Mesmo antes da pandemia, porém, o Paraná já vinha em tendência de queda nos transplantes, conforme mostra o balanço do Sistema Estadual de Transplantes. Em 2018, o número de órgãos sólidos de doadores falecidos transplantados no Estado foi de 949. Em 2019, houve queda de 18,01%, encerrando os 12 meses em 778 cirurgias. No ano seguinte, primeiro ano da pandemia, foi observada uma nova queda, de 10,28%, totalizando 698 transplantes, e no ano passado, 663, recuo de 5,01%. Nos primeiros meses de 2022, foram transplantados 293 órgãos.

Efeitos da pandemia

Coordenadora da OPO (Organização de Procura de Órgãos) de Londrina, Emanuelle Fiorio Zocoler atribui a baixa no número de transplantes principalmente à pandemia. A doação, lembra ela, depende do acolhimento que a instituição de saúde oferece à família desde que o paciente em estado crítico dá entrada na unidade. Os familiares precisam perceber que todos os procedimentos para salvar a vida de seu parente foram adotados, mas ainda assim o quadro teve um desfecho desfavorável e ele morreu.

Com a pandemia, diz Zocoler, os hospitais se desorganizaram nesse processo de acolhimento e abordagem às famílias, resultando em desinformação sobre a doação de órgãos, ocasionando o aumento da taxa de recusa. O grande número de afastamentos de trabalhadores da saúde também foi um fator importante na queda do número de doações. Os profissionais responsáveis pelas comissões intra-hospitalares responsáveis pela doação de órgãos e tecidos foram deslocados para outros setores para cobrir o deficit de funcionários. “O deslocamento do profissional que fazia parte dessa comissão para outros setores também fez diferença. Esse profissional tem um olhar diferente para a família”, comenta a coordenadora. “Até agora, em muitos hospitais, esses funcionários ainda não voltaram para as comissões.”

O desconhecimento em relação à Covid-19 e as contraindicações para doações de órgãos acarretadas pela doença e a suspensão das cirurgias eletivas de transplantes de córnea e de rins também contribuíram para o crescimento do número de pacientes em espera em todo o estado. A fila, que estava zerada antes da pandemia, hoje conta com mais de mil pacientes. Os procedimentos eletivos ficaram suspensos por cerca de cinco meses durante a pandemia.

CAMPANHAS

Para reduzir a taxa de recusa, aumentar as doações e fazer a fila andar, Zocoler diz que é preciso voltar a intensificar os treinamentos nas OPOs, que ficaram parados em razão da pandemia. “Estamos pegando firme agora para treinar a maior quantidade de funcionários dos hospitais notificadores. Isso faz diferença no resultado final. Com os treinamentos acontecendo efetivamente em todos os hospitais, a gente espera que as taxas de recusa diminuam e os transplantes cresçam. Vamos ver se essa fila diminui.” A OPO Londrina tem 25 hospitais notificadores, mas a coordenadora planeja estender o treinamento também a hospitais privados, para aumentar as entrevistas com as famílias e melhorar as taxas de autorização de doações feitas nessas unidades.

A lista de espera no estado cresceu. Em 2021, havia 1.933 receptores ativos, a maioria deles (1.230), aguardando por um rim. Neste ano, já são 521 a mais, alta de quase 27%, totalizando 2.454. Os pacientes que aguardam por um rim somam agora 1.314.

Uma das pessoas que esperam pela doação de um rim é o agricultor Alcino Fávaro, 70 anos, renal crônico há quase um ano. Ele entrou na fila de transplante no último dia 28 de junho e espera um receptor para viver “com mais liberdade”.

A condição clínica de Fávaro o obriga a se deslocar de Cambé (Região Metropolitana de Londrina), onde mora, para Londrina todas as terças, quintas e sábados, quando se submete a sessões de hemodiálise. A rotina é cumprida com rigor desde outubro do ano passado. “É chato, é difícil. A gente não pode ir longe, não pode viajar. Fica preso à máquina. E tem que segurar a ingestão de potássio e controlar o consumo de água. Passo muita sede, não tem jeito”, conta.

Para viver com mais qualidade de vida e ter de volta a liberdade de planejar férias e outros passeios a locais mais distantes, o agricultor conta com a solidariedade. “A gente fica muito feliz quando sabe que alguém fez uma doação porque depois que a pessoa morre, aquele órgão não serve mais para nada, mas pode ajudar um paciente”, diz Fávaro. “A gente precisa que as pessoas doem. A doação é um ato de amor.” (S.S.)

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