Brasília - O governo Jair Bolsonaro (PL) registrou denúncias sobre "ideologia de gênero" em 2020 e em 2021. Em 2022, último ano do mandato, a gestão do presidente decidiu abandonar a possibilidade de fazer registros oficiais sobre as acusações do tipo.

Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil 

A gestão de Damares Alves incluiu "ideologia de gênero" no escopo de motivações de violações de direitos humanos
Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil A gestão de Damares Alves incluiu "ideologia de gênero" no escopo de motivações de violações de direitos humanos | Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil/28-3-2022

As denúncias foram recebidas pelo Disque 100, principal instrumento do governo federal para relatos sobre violações de direitos humanos. É pelo canal, por exemplo, que chegam acusações de violência contra crianças, adolescentes, idosos, pessoas com deficiência, pessoas que vivem nas ruas e população LGBTQIA+.

A gestão de Damares Alves (Republicanos) à frente do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, responsável pelo Disque 100, incluiu "ideologia de gênero" no escopo de motivações de violações de direitos humanos.

Damares deixou a pasta em março para disputar uma vaga ao Senado na eleição em outubro. O ministério não respondeu aos questionamentos da reportagem enviados à assessoria de imprensa.

Informações fornecidas pela pasta à reportagem, por meio da LAI (Lei de Acesso à Informação), confirmam que a possibilidade de denunciar "ideologia de gênero" via Disque 100 foi oficialmente garantida pelo menos entre julho de 2020 e dezembro de 2021.

A partir de 1º de janeiro de 2022, a expressão foi retirada da lista de motivadores de violação de direitos humanos, conforme a resposta do ministério à reportagem.

Mesmo assim, permanece a possibilidade de uso do Disque 100 para acusações, em categorias como "violência institucional", segundo entidades que acompanham questões relacionadas a gênero e sexualidade.

Há uma contradição entre os dados do painel da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, vinculada ao ministério, e as informações fornecidas para a Folha de S. Paulo via LAI.

Os dados do painel registram denúncias anteriores a julho de 2020 enquanto as informações enviadas pela pasta apontam para casos somente após o segundo semestre daquele ano.

Segundo os dados públicos do painel, o Disque 100 recebeu 1.165 denúncias de violações "em razão de orientação sexual/ideologia de gênero" no primeiro semestre de 2020. No segundo semestre de 2020 e em 2021, foram mais 3.366 denúncias, totalizando 4.531 acusações em dois anos.

A expressão "ideologia de gênero" é usada por políticos conservadores para atacar questões de identidade, gênero e orientação sexual. Com isso, tornou-se uma bandeira ideológica de Bolsonaro e seus apoiadores. Ela também é usada insinuar que espaços como escolas e unidades de saúde defendem a imposição de um gênero ou de uma orientação sexual.

Cabe ao Disque 100 encaminhar as denúncias recebidas a órgãos responsáveis por controle e investigação, como o Ministério Público e a polícia.

No fim de 2021, tornaram-se públicos casos de investigação policial motivada por denúncias de "ideologia de gênero" em escolas públicas, no Rio de Janeiro e na Bahia. Em um dos casos, o Disque 100 foi o canal utilizado para a primeira acusação.

A CNTE (Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação) e a CNTS (Confederação Nacional dos Trabalhadores em Saúde) ingressaram com uma ação no STF (Supremo Tribunal Federal) para tentar blindar o Disque 100 do recebimento de denúncias do tipo.

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"O canal tem sido via recorrente de enfrentamento às posições do STF em temas como vacinação, identidade de gênero e orientação sexual, com acionamento de forças policiais para constranger pessoas e instituições que têm concepções de vida e de mundo distintas daquele ministério", cita a ação, assinada pela ex-procuradora federal dos Direitos do Cidadão Deborah Duprat.

A inclusão de "ideologia de gênero" como possibilidade de denúncia via Disque 100 acaba por cercear o debate sobre gênero, sexualidade e orientação sexual em sala de aula, afirma a ação.

O ato do ministério sob Damares contraria jurisprudência do próprio STF, que garantiu o direito à identidade de gênero e julgou inconstitucionais leis estaduais e municipais que proibiam discussão de temas do tipo em sala de aula, segundo a ação. Essas leis buscavam combater a "ideologia de gênero".

Ao transportar isso ao Disque 100, o ministério de Damares reuniu num mesmo tópico de motivação de violação de direitos aspectos relacionados à orientação sexual e a "ideologia de gênero". Assim, não há clareza sobre os números oficiais.

Segundo a pasta, não é possível saber quantos são os casos de violações de direitos em razão da orientação sexual da vítima – por exemplo, um ato de discriminação porque uma mulher é lésbica – e quantos são os casos de violações de fato por "ideologia de gênero".

Com a exclusão de "ideologia de gênero" da classificação feita no Disque 100, houve 487 denúncias tendo como motivação a orientação sexual, entre 1º de janeiro e 4 de abril de 2022, conforme os dados do serviço.

"Qualquer violação de direitos humanos pode ser registrada nos canais de atendimento da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, contudo, nenhuma delas, desde janeiro de 2022, conterá o elemento circunstancial de motivação 'em razão da ideologia de gênero'", informou o ministério, na resposta por meio da LAI.

Uma nota técnica da pasta de 15 de dezembro de 2021 sugeriu a alteração. "A utilização de duas expressões em um mesmo 'select' tem gerado dúvidas quanto à interpretação do indicador e até mesmo a ideia equivocada de ambos os termos serem sinônimos", afirma a nota.

"Uma vez que a descrição da motivação identifica a expressão 'em razão da orientação sexual', sugere-se a retirada do termo 'ideologia de gênero' do Manual da Taxinomia e do Painel de Dados, mantendo-se apenas o indicador de motivação 'em razão de orientação sexual'", completa.

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