WASHINGTON, EUA (FOLHAPRESS) - Pedir aos alunos que falem sobre suas famílias é algo comum na pré-escola. Na Flórida, a atividade poderá se tornar um problema para os professores.

Uma nova regra, chamada Lei de Direitos dos Pais na Educação e apelidada pelos críticos de "Don't Say Gay" (não diga gay), foi aprovada pelo Senado estadual em 8 de março e sancionada pelo governador, o republicano Ron De Santis, nesta segunda-feira (28).

O texto diz que "instruções sobre orientação sexual ou identidade de gênero não podem ser dadas no jardim de infância e até o terceiro ano do ensino fundamental, o que afeta crianças de até oito anos". Indica também que esses conceitos não devem ser debatidos "de modo que não seja apropriado à idade" e "de acordo com padrões estaduais".

Os poréns: o currículo escolar da Flórida não prevê a abordagem desses temas nessa faixa etária, e o projeto não define quais seriam os parâmetros estaduais.

"A lei poderá restringir conteúdos sobre igualdade e preconceito em relação a indivíduos LGBTQIA+, potencialmente em todas as séries. Poderá restringir clubes formados por estudantes de apoio aos gays. Um professor pode não ser capaz de indicar livros ou lições que discutam a homossexualidade ou a identidade de gênero de modo afirmativo", avalia Jeremy Young, gerente-sênior da Pen America, entidade de defesa da liberdade de expressão.

Assim, docentes e especialistas críticos ao projeto apontam que a principal consequência da lei será tornar o ambiente escolar mais hostil e menos acolhedor.

"Tenho uma filha de quatro anos, fase em que as crianças aprendem sobre feriados como o Dia de Ação de Graças. Imagine que, na segunda-feira, um aluno diga sobre o encontro de sua família: 'Minha tia levou sua esposa'. Se outro aluno pergunta 'como assim?', o que o professor deveria fazer?", exemplifica Kevin Goldberg, especialista da Freedom Forum, entidade de defesa de direitos civis.

"É uma atividade sobre famílias, que ensina sobre tradições, mas ele pode não saber como lidar com isso, por risco de ter problemas."

Clay Calvert, diretor do projeto Primeira Emenda, da Universidade da Flórida, avalia que os docentes poderão passar a praticar autocensura, por medo de que eles e a escola sejam processados pelos pais.

"Nenhum professor ensina seus alunos a serem gays. Acreditamos na inclusão e na diversidade, e precisamos aceitar as crianças como elas são. Se a criança quiser falar sobre seus pais gays, deve poder fazer isso na sala de aula sem se sentir intimidada", pondera Karla Hernandez-Mats, presidente do sindicato United Teachers of Dade, da região de Miami.

Segundo ela, educadores LGBT também estão se sentindo ameaçados --uma delas teria dito que já decidiu deixar a profissão. "Temos falta de professores nos EUA. É uma carreira nobre, mas estressante e mal paga, e as pessoas não estão mais querendo entrar nela."

A Don't Say Gay é só mais um exemplo de uma onda que tenta aumentar o controle dos pais sobre o conteúdo escolar nos EUA. O tema foi usado com sucesso na eleição estadual da Virgínia, em novembro. O republicano Glenn Youngkin, eleito em um estado até então sob controle democrata, prometeu na campanha acabar com o ensino da chamada teoria crítica da raça --que não fazia parte do currículo.

Em novembro deste ano haverá eleições regionais na Flórida e em outros 35 estados, além da renovação de parte do Congresso. De olho em atrair votos, políticos republicanos têm reforçado o apoio a pautas capazes de atrair o eleitorado conservador.

"A lei diz aos pais que seu direito de criar os filhos não termina quando eles entram na sala de aula. Reconhece que os pais não são o inimigo", disse o senador estadual Danny Burgess, que votou a favor da medida. "A lei simplesmente diz que deve haver um limite de idade para certas discussões. Isso não é um conceito novo nem radical."

Ele e outros defensores da proposta argumentam que ela foi deturpada, já que não veta explicitamente o uso de termos como "gay". Segundo essa linha, as crianças podem ficar confusas ao aprenderem muito cedo sobre o conceito de identidade de gênero.

"[A lei] protegerá crianças pequenas do que é, de fato, uma preparação sexual. Nos últimos anos, material explícito e inapropriado tem inundado salas de aula", escreveu Jay Richards, pesquisador do Heritage Foundation, think tank conservador. Ele cita o caso de um professor do estado de Washington que teria lido, para uma sala de primeiro ano, um livro infantil chamado "I Am Jazz", que trata de transição de gênero.

Os democratas se opuseram de modo firme à medida, inclusive em nível nacional. "Por que políticos da Flórida estão decidindo que precisam discriminar crianças membros da comunidade LGBTQIA+? É por maldade? É por querer que as crianças tenham tempos mais difíceis na escola e na comunidade?", questionou Jen Psaki, porta-voz da Casa Branca, no início do mês.

O secretário da Educação dos EUA (equivalente a ministro), Miguel Cardona, engrossou as críticas, chamando o texto de lei de ódio e dizendo que ela pode afetar alguns dos estudantes que mais precisam. Segundo ele, escolas que recebem fundos federais devem seguir as leis de direitos civis, incluindo proteções contra discriminação com base em orientação sexual e identidade de gênero.

"Projetos como esse não resolvem nenhum problema. Em vez disso, atacam de forma vergonhosa e colocam em perigo estudantes LGBTQIA+, a quem o Estado tem obrigação de proteger e tratar de forma igual", diz Cathryn M. Oakley, diretora de legislação estadual na Human Rights Campaign. Ela lembra que pessoas desse grupo têm mais que o dobro de risco de sofrer problemas como depressão e ansiedade.

Um levantamento da entidade mostrou que 25 leis consideradas anti-LGBTQIA+ foram aprovadas nos EUA em 2021 -e mais de 290 propostas nesse sentido foram apresentadas em 33 estados.

Na semana passada, parlamentares da Geórgia propuseram uma lei similar à Don't Say Gay, e o Senado da Flórida debate outra lei, chamada de Stop Woke Act, que prevê restrições a discussões de temas como desigualdade racial em locais de trabalho e salas de aula -numa eventual aprovação, empresas que tratarem do tema com seus funcionários poderiam ser processadas.

Especialistas lembram que textos assim podem parar na Justiça, com base na Primeira Emenda, que garante a liberdade de expressão. "Ao dar aulas, professores são pagos para repassar conteúdo, de modo que a Primeira Emenda não se aplica a eles nesse contexto. Mas a norma também diz que as pessoas -os estudantes-, têm direito a receber informações, e essa nova lei poderá ser questionada por restringir esse direito", analisa Calvert.

Outro problema da norma é não deixar claro se "instrução" se refere apenas ao conteúdo das aulas ou a qualquer interação entre aluno e professor. "Emendas constitucionais requerem que leis sejam escritas com precisão, para que as pessoas possam saber se a estão violando ou não. Assim, a Don't Say Gay é potencialmente inconstitucional", diz Goldberg.