Moscou, Rússia - O presidente Jair Bolsonaro (PL) inicia nesta terça-feira (15) a viagem mais polêmica e arriscada de seu mandato até aqui, com uma curta passagem pelo centro da maior crise de segurança da Europa em décadas, a Moscou de Vladimir Putin.

Estevam Costa/PR 

O próprio Bolsonaro e outras autoridades têm tentado diminuir a percepção óbvia da impropriedade do "timing" da visita
Estevam Costa/PR O próprio Bolsonaro e outras autoridades têm tentado diminuir a percepção óbvia da impropriedade do "timing" da visita | Foto: Estevam Costa/PR

Em meio ao que o Kremlin chama de histeria ocidental, os EUA dizem que uma invasão russa da Ucrânia é iminente e pode acontecer nesta semana. O próprio Bolsonaro e outras autoridades têm tentado diminuir a percepção óbvia da impropriedade do "timing" da visita, proposta por Putin no final do ano.

Evidentemente, não haveria como o russo ou o brasileiro saberem que esta seria uma semana tão decisiva na história recente da Europa, mas a sequência de recados dos EUA contra a viagem sugere a fatura a ser cobrada.

A presença do brasileiro em meio à crise, sem uma visita casada a Kiev, tende a ser lida como um apoio tácito às exigências russas de evitar a entrada da Ucrânia na Otan, aliança militar do Ocidente, e para resolver a questão das áreas separatistas pró-Kremlin no leste do país. Depois do encontro com Putin, Bolsonaro visita a Duma (Câmara baixa do Parlamento) e um fórum de empresários brasileiros e russos.

Bolsonaro e a comitiva entrariam na bolha anti-Covid do Kremlin. Putin é notoriamente paranóico com a doença, e creditou ao fato de que Emmanuel Macron não ter feito um teste RT-PCR russo o fato de ter colocado o presidente francês na mesa gigante que virou meme na semana passada.

Todos na comitiva serão testados de três a cinco vezes ao longo da estadia -inclusive Bolsonaro. Jornalistas com acesso ao interior do Kremlin precisam produzir três resultados negativos nos dias que antecedem o encontro de Putin com Bolsonaro, na quarta (16).

O evento ocorrerá depois de o brasileiro depositar uma coroa de flores no Túmulo do Soldado Desconhecido, no Jardim de Alexandre, ao lado do Kremlin. Em 2017, na mais recente visita do tipo, Michel Temer ganhou um "Fora Temer" gritado à distância por turistas.

É improvável que isso ocorra agora: Moscou está esvaziada de turistas, com números preocupantes de contaminação pela variante ômicron.

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Depois, Bolsonaro e Putin se encontram e participam de um almoço mais ampliado com a comitiva. De ministros, estarão presentes o chanceler Carlos França, Walter Braga Netto (Defesa) e Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo).

Houve um enxugamento profilático também da comitiva de Mário Frias (Cultura) e equipe, que viajariam sem exatamente uma agenda conhecida, mas desistiram depois de que foi revelado o custo de uma viagem igualmente sem propósito claro do secretário aos EUA.

Haverá também eventos laterais, como o encontro de Braga Netto e França com seus homólogos. Aqui o tema da Ucrânia, acreditam diplomatas envolvidos na conversa, deverá ser explorado mais do que na conversa Putin-Bolsonaro.

De todo modo, o discurso é único: o Brasil segue as resoluções das Nações Unidas, e a que fala sobre a situação no leste da Ucrânia pede uma saída negociada.

Não houvesse a crise de segurança, o tema predominante da agenda seria fertilizantes. A Rússia é líder mundial no campo, e pandemia atrapalhou as cadeias produtivas, aumentando os preços internacionais.

Dos R$ 5,7 bilhões que o Brasil importou da Rússia em 2021, 60% corresponderam a insumos fosfatados e nitrogenados. Nas conversas prévias, iniciadas em visita de França e Tereza Cristina (Agricultura) no fim do ano, a ideia era a de estabelecer um contrato mais permanente para garantir o fluxo ao país.

Os russos também deverão assinar a intenção de compra de uma fábrica de fertilizantes da Petrobras, para formalizar a parceria. Tereza, uma eventual candidata a vice na chapa de Bolsonaro assim como Braga Netto, não viajou porque contraiu Covid-19.

No caminho inverso, o Brasil exportou soja e outros produtos básicos, somando US$ 1,6 bilhão no ano passado.Isso mostra, contudo, que há nuances acerca da viagem de Bolsonaro, ainda que ele a tenha defendido com o argumento de que o russo é um "conservador" como ele e Viktor Orbán, o autocrático premiê húngaro que visitará no dia 17, na sequência do giro.

Há até algumas curiosidades. Quando Dilma Rousseff (PT) sofreu o impeachment em 2016, a imprensa estatal russa falava em "golpe".

Nem tanto por afinidade, embora claramente houvesse uma boa relação com o PT, mas mais porque a ressonância ideológica de qualquer derrubada de líder é malvista nos meios oficiais russos.

Bolsonaro, por sua vez, foi elogiado por Putin por suas "qualidades masculinas" quando enfrentou a infecção pelo novo coronavírus, sugerindo má informação do russo paranoico com a doença ante a irresponsabilidade sanitária do colega. Seja como for, o Brasil hoje é um pária em vários fóruns, e certamente a foto de Bolsonaro com Putin não o ajudará, mas não se trata de algo inédito para um mandatário brasileiro.

Desde o fim da Guerra Fria, o Itamaraty sempre buscou nas relações com polos alternativos aos EUA uma forma de ampliar seu papel no mundo.

Nos anos de Luiz Inácio Lula da Silva (PT, 2003-2010) na Presidência, houve uma guinada mais radical para a dita diplomacia Sul-Sul, que podia ser encarnada no bloco Brics, que unia justamente Brasil, Rússia e Índia, em 2006 -a África do Sul chegou ao clube depois. Hoje o bloco é inócuo, pálido ante a forte aliança entre Moscou e Pequim em oposição ao Ocidente.

Seja como for, a relação com a Rússia sempre teve destaque. Presidente que mais viagens internacionais fez, 139, Lula dedicou 4 delas ao país de Putin. Dilma (2011-16), outras 4, e Temer (MDB, 2016-18), 1.

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