Em meio à pandemia em decorrência da Covid-19, o mundo vive um bombardeio de informações vindas de todos os lados. Diante deste cenário de crise, é comum observar que muitas pessoas não entendem a gravidade da situação e que o momento exige colaboração de todos em diversos sentidos, seja no isolamento social ou mesmo na adoção de boas práticas de higiene.

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. | Foto: Pixabay

"Muitas pessoas acham que o que que está acontecendo não as atinge diretamente", comenta o psicanalista Sylvio do Amaral Schreiner, "porque a gente costuma ver a tragédia longe. Ela vem através das notícias - não estamos acostumados a vê-la por perto". Aqui no Brasil, apesar de haver situações pontuais, como o rompimento da barragem em Brumadinho (MG), a população não está habituada a viver situações trágicas. "É algo mais pontual, não que está sempre acontecendo. Ou seja, aquilo que não nos afeta diretamente, a gente acha que nunca chega até nós. Muitos daqui de Londrina acham que é um problema na Europa essa pandemia - de São Paulo, Rio de Janeiro, no máximo -, e vão vivendo de acordo com isso, com essa descrença. Aliado a isso, existe um mecanismo de defesa mental chamado negação. A gente nega aquilo que nos assusta, aquilo que nos amedronta. Assim, na verdade, as pessoas ficam com medo - às vezes elas não têm acesso a esse sentimento, e acabam usando a negação", explica.

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Schreiner lembra que havia negação semelhante antes da Segunda Guerra Mundial entre os judeus na Europa diante das informações de que o movimento nazista estava se fortalecendo. "Muitos deles eram inteligentes, professores universitários, médicos, empresários, banqueiros. Eles usaram da negação - 'não não vai acontecer. Está ruim, mas não vai piorar. Não dá para piorar mais do que isso. Não vai ser trágico como todo mundo está falando'. E realmente foi - tanto que houve campos de concentração e eles foram levados, forçados. Aqueles que ficaram com medo e aceitaram esse medo foram embora da Europa", lembra. "A gente vê muitas pessoas usando a negação em relação a essa pandemia, que é uma coisa que a gente sabe que está acontecendo, mas é como se a pessoa, o grupo de pessoas, falasse: 'não, isso não é bem assim'. As pessoas estão com medo só que eles negam o medo para não terem que entrar em contato com aquilo que as amedronta", pontua.

Lidar com o que é contraditório é lidar com o que é humano, já que o ser humano está sempre lidando com a contradição, comenta o psicanalista. "A gente gostaria de ter certeza de alguma coisa, que as coisas fossem preto ou branco e não tivessem uma gradação de cores. Até me lembrei, por exemplo, de um arco-íris: quando a gente desenha um, que é daqueles desenhos bem simples que as crianças geralmente fazem, tem a faixa do vermelho, a do laranja, do amarelo. Só que, na verdade, chega um momento em que não se sabe mais se é vermelho ou laranja, porque a cor está entre os dois. E é isso que o ser humano tem dificuldade de aceitar", aponta. "O ser humano fica oscilando entre acreditar nessa pandemia e ficar com medo ou não acreditar, negar. Então fica tudo contraditório. Mas se a gente puder suportar e tolerar a contradição, a gente vai acreditar na pandemia mas não vai precisar se desesperar. Vai conseguir também se preservar e se defender, tomar todas as medidas mais realistas."

"Quando a gente aceita a contradição, a gente se torna mais realista. Mas quando a gente não aceita a contradição, as coisas ficam maniqueístas - se é bom, é 100% bom; se é mal, 100% mal - e divididas. E isso não é realista, porque assim como as pessoas não são 100% más e não são 100% boas, essa situação também: ela oferece riscos, mas não precisa ser encarada com o fim do mundo", esclarece. "O que as pessoas precisam é poder aceitar contradição. Só que é difícil aceitar que as coisas têm os dois lados - que tem tanto um lado que oferece risco quanto um lado que, por isso mesmo, vai demandar que a gente se preserve, que se cuide, se proteja, que não é o fim do mundo e a gente pode tolerar isso, não precisa decretar o Apocalipse. É ser realista. É a única maneira de a gente lidar com a vida com qualquer coisa, e não só no momento de crise, mas em um relacionamento, nas nossas questões financeiras profissionais. É ser realista, não tem outro jeito".

FAKE NEWS

Um fenômeno que se multiplica atualmente é o das fake news (notícia falsas). Muita gente prefere acreditar em algo que chega por meio de redes sociais e amigos porque as informações oficiais são duras, esclarece o psicanalista. "A realidade é dura. E a pessoas não querem encarar isso. Aí vem de novo o quanto as pessoas têm dificuldade em encarar a realidade. É claro que isso é uma falta de maturidade mental. Quando a gente, vê por exemplo, as pessoas acreditando em fake news, é porque é muito mais gostoso acreditar em fake news. Elas devem oferecer um mundo paralelo que não existe, que é alucinatório, muito mais gostoso, muito mais interessante, muito mais prazeroso. E as informações oficiais não, elas são duras, elas falam dos perigos, das medidas que temos que tomar, elas exigem de nós uma responsabilidade da nossa parte. E isso dá muito mais trabalho, isso é muito mais difícil de lidar", explicita.

Outro ponto é o dos que dizem que "a imprensa é lixo, a imprensa mente e está manipulando. Até o nosso presidente (Jair Bolsonaro, sem partido) fala que a imprensa quer derrubá-lo porque na verdade, quando a pessoa não está vivendo a realidade, ela tem que encontrar um inimigo. Lembra na Venezuela quando tinha o Hugo Chávez? O inimigo eram os Estados Unidos. Todos os problemas que aconteciam na Venezuela eram os Estados Unidos que causavam. Então, o inimigo era sempre alguma coisa - não que os Estados Unidos não tenham feito coisas ruins – fizeram e muito. Mas não era assim como o Hugo Chávez falava", recorda. "Aqui, muitas pessoas estão elegendo a imprensa ou as informações oficiais como inimigos porque têm que jogar o inimigo fora para dizer: o inimigo está lá, estou combatendo. E ficam em um mundo alucinatório de prazer onde tudo é maravilhoso. Se a gente for ver bem, essas pessoas estão achando que nada está acontecendo, que está tudo maravilhoso porque não querem enfrentar a realidade. Elas não querem ter que mudar a vida porque o que está acontecendo está nos exigindo mudar a vida, tomar atitudes novas e desconhecidas. E é isso que a gente – como um grupo de pessoas, como um povo, tem grande dificuldade - é uma questão mental também", pondera.

TRAGÉDIAS AO LONGE

Em outros países como o Japão, por exemplo, o isolamento social não é determinado pelo governo. "Se a gente for ver bem, os japoneses já estão acostumado com tragédias: furacões, maremotos, tsunamis, até outras, como aquela da usina nuclear de Fukushima que acorreu não faz muito tempo. Eles sabem que há riscos reais, muitos já perderam parentes nessa situações. Então, eles sabem que é real, que isso pode acontecer, que não são invulneráveis, mas são como qualquer ser humano, vulnerável ao mundo, às doenças, aos desastres e por aí vai. Eles lidam com mais realidade, por isso mesmo eles obedecem (às determinações oficiais ) - não é que eles obedecem porque ficam cegos ou confiam totalmente no governo, mas eles sabem que aquilo ali é algo real. Então, por isso mesmo, eles ficam em casa, mantêm uma certa ordem porque já há anos e anos eles vêm convivendo com perigos reais. Eles aprenderam a não negar, usam menos da negação e aprenderam a ser mais realistas.

No Brasil, isso não acontece, mas não porque o brasileiro é pior que o japonês e nem o japonês é melhor que o brasileiro. "A questão não é essa. A gente nunca passou por uma situação dessas em que é preciso ficar trancado dentro de casa. Isso é uma situação totalmente nova. Por isso mesmo, as pessoas não entendem que isso é real. E elas quebram (a regra) não por perversão, por um prazer em quebras as regras, mas porque elas não entendem. Fica além do entendimento delas que estão oferecendo risco; as pessoas não se dão conta. Elas vão achando que 'aquilo lá não é tão perigoso assim' porque nunca viveram o perigo de fato de perto", coloca. "Eu diria que é uma questão de hábito. Não temos a cultura de nos preservarmos de fato porque a gente enfrentou muito pouco os perigos. A gente fica meio que ingênuos frente a eles", comenta.