Era uma casa quadrada, de madeira, sem pintura, seminova, que ficava no meio do nada, numa rua forrada de grama, que tantas vezes contemplei e corri por ela, pés descalços, sentindo o cheirinho de mato, andando sem rumo pela pequena cidade. Uma rua muito, muito verde, que, se existiu ou não, não importa… só sei que é assim que me lembro e que ela foi palco de muitas histórias, vivências de um tempo em que os dias corriam diferentes.

Em volta da casa não havia muros, era demarcada por um quintal de terra muito limpo, varrido diariamente e que parecia uma calçada natural.

Era lá que morava o Zé “relojeiro”, o homem que, dia e noite, controlava o tempo consertando relógios; estava sempre mexendo naquelas pequenas e complexas máquinas, no olho uma lupa que mais parecia um dedal, as mãos com manchas brancas, meio calvo, sério, solitário, misterioso.

Era um bom vizinho, distinto, solidário, apesar de viver de maneira tão singular. Bom vizinho porque lembro de tê-lo visto conversando com meu avô Mário, se não me falha a memória, certa vez em que meu irmão fez um corte no dedão do pé quando foi carpir o quintal que ficava no fundo da casa do Zé “Relojeiro” …deu uma enxadada no pé de mandioca e arrancou um toco do próprio pé, ficando uma cicatriz de lembrança.

Mas o Zé “Relojeiro”, além de guardião do tempo, também vendia outras jóias, como um anel de pedra vermelha que minha mãe tinha. Pedra vermelha de rubi. E outras peças mais. Mas seu forte mesmo era consertar relógios e mais relógios, de pulso ou despertadores, relógios de bolso, de paredes, consertava correntes e tudo o que precisasse soldar.

Só não entendia, no meu raciocínio de criança , porque aquela casa ficava no meio da grama. E estivesse sempre impecavelmente varrida. E como aquele homem conseguia viver tão sozinho! Que descesse e subisse a rua em frente à minha casa, na rua gramada. Mas ele era, na cidade, uma referência profissional. Era o homem que controlava o tempo de todas as pessoas daquele lugar. Que atrasava, adiantava, acertava os minutos, os segundos, as horas das vidas das pessoas e, assim, iam transcorrendo os dias, os meses, os anos, controlados por aquelas mãos manchadas de branco, aqueles olhos concentrados nas máquinas do tempo.

Se fosse hoje passaria despercebido, com poucos clientes, pois quem ia querer consertar relógios de bolso, por exemplo…até mesmo de pulso…ou despertadores que foram todos substituídos pelo celular . Mas naquele tempo necessitávamos desse objeto para marcar nossas horas, do despertador que precisava dar corda antes e que, quando “despertava”, balançava a casa toda como nos desenhos animados . Além de relógio ser uma jóia, é claro!

Resgatando lembranças, tento acertar os ponteiros novamente naquele tempo. Mas percebo, com tristeza, que o relógio só caminha para frente, sentido horário, apesar de minha vontade querer que volte atrás, que se atrase, que vá devagar, devagarinho, mas, como bem disse o Poeta Mário Quintana: “…quando se vê passaram 50 anos…”

O tempo não envelhece, nós sim é que envelhecemos ! Só em nossa memória permanecem atualizadas aquelas horas e aqueles dias que gostaríamos “ que o tempo parasse” . Correr descalça pela rua de grama, que agora foi sufocada, avistar aquela casa que nem existe mais. E o guardião do tempo, será que ainda vive ou se perdeu no tempo que deixou de controlar?

Imagem ilustrativa da imagem Zé Relojoeiro
| Foto: iStock

Não sei. Só sei dizer, para alimentar minha saudade, que aqueles foram tempos muito bons, talvez os melhores tempos da minha vida.

Estela Maria Frederico Ferreira, leitora da FOLHA

IMAGEM: iStock