“No ano passado, trabalhava de tratorista na usina Alto Alegre. Trabalhávamos em um lote, fomos para o outro e fui sozinho com o trator. Estava em Lobato e fui para Nossa Senhora das Graças em outro arrendamento da usina. Geralmente, a gente trabalhava em quatro tratoristas, mas eu fui sozinho. O meu turno era o da madrugada”.

O início do causo do operador de máquinas agrícolas, João Paulo de Andrade, não aparenta introduzir nada que esteja distante da rotina de outros inúmeros trabalhadores rurais do Norte do Paraná. Porém, costumam dizer que “o medo não é do escuro, mas sim do que ele pode esconder”.

“Dei uma cochilada e despertei com um velho de chapéu na frente da roda do trator. Freei assustado. Quando fui procurar, não tinha ninguém por perto”, relembra Andrade
“Dei uma cochilada e despertei com um velho de chapéu na frente da roda do trator. Freei assustado. Quando fui procurar, não tinha ninguém por perto”, relembra Andrade | Foto: Marco Jacobsen

João trabalhava direto em seu turno da madrugada. Deixava para cumprir o tempo de intervalo no final da labuta. Aproveitava para descansar no fim do turno e já seguir de volta para casa. A prática deixava o trabalho repetitivo ainda mais desgastante. “Cheguei lá e outra equipe de trabalho esparramava vinhaça na cana cortada. Fui pro trator pra ‘enleirar’ a palha. Fui avisar o líder e ele me disse ‘então, você está sozinho? Tome cuidado’. Não dei importância. Fiz a volta e peguei do outro lado do lote, na beira da mata. Isso já era umas 3h da manhã. Eu ia, fazia o virador na estrada de cana e voltava na de baixo. Lá pelas 4h da manhã, eu já estava com muito sono. Dei uma cochilada e despertei com um velho de chapéu na frente da roda do trator. Freei assustado. Quando fui procurar, não tinha ninguém por perto. Estava sozinho no lote. Precisei parar para jogar água no rosto”.

Apesar de ter visto o “colega” de trabalho inesperado, o trabalhador não pôde parar de trabalhar. Após o primeiro espanto, veio a confirmação. “Me assustei muito na hora, mas passou. Voltei com a certeza que era apenas o sono, mas, ainda sim, com medo. Foi só voltar no mesmo lugar da primeira aparição que voltei a ver o velho de novo. Foi bem na roda do trator, pensei até que ia atropelar o velho. Chamei ‘Bruninho’ no rádio e perguntei se ele ia demorar. Chamei ele para terminar o serviço ali e dei um ‘migué’, né? Falei pra ele terminar o serviço por mim, porque o meu trator era muito grande e atropelaria as ruas de cana”.

Desculpas à parte, João não conseguiu disfarçar que havia entrado em contato com algo. Para a sua maior surpresa, ele não estava louco ou apenas morto de sono. O que presenciou era uma figura conhecida de outros funcionários da mesma função. “Quando ele chegou, já tava rindo da minha cara. ‘Ué, João, seu trator não é tão grande não, dá pra fazer aqui, sim. Você viu alguma coisa?’. Perguntei como ele sabia e contei a história do velho. Ele disse que já tinha certeza disso. Todo tratorista que trabalha ali de madrugada vê esse velho no mesmo lugar”. João afirma que no campo, é comum que se presencie histórias e tenha contato com o sobrenatural – diretamente ou por meio de causos contados por outros trabalhadores. Até hoje, a aparição do velho na zona rural de Nossa Senhora das Graças segue sem explicação.

A NOIVA ENTRISTECIDA

A igreja abandonada no meio da estrada é famosa pela história da noiva fantasma
A igreja abandonada no meio da estrada é famosa pela história da noiva fantasma | Foto: Hiury Pereira

Cerca de 10km de distância da cidade, o distrito de Alto Alegre, em Colorado, também registra uma lenda muito conhecida. A igreja abandonada no meio da estrada é famosa pela história da noiva fantasma. Antônio Paulo de Andrade também trabalhava de tratorista na região. O homem garante que os moradores do distrito evitam, de todo jeito, passar por ali após a retirada do sol. “Tava tudo certo pra casar. O noivo a abandonou na igreja. O cara não chegou pra acertar todo o casamento. ‘Ela ficou desgostosa’. Se enforcou em uma árvore no fundo da igreja, num é? Agora, ela sempre caminha em volta da igreja. E aí, eu trabalhando, gradeando, tampando, dá maior medo. Eu nem olhava pro lado. Chega arrepio inteiro de medo. Só trabalhava com outro funcionário lá. Tinha medo era demais. Não tinha coragem. Ela era uma moça tão bonita. Linda, linda, linda. A maioria de Alto Alegre nem anda por lá à noite, porque ela aparece”, afirma.

O COQUEIRO TORTO

Contam os moradores de Alto Alegre que no local do coqueiro torto podiam ouvir vozes de quem não estava ali
Contam os moradores de Alto Alegre que no local do coqueiro torto podiam ouvir vozes de quem não estava ali | Foto: Hiury Pereira

Histórias sobrenaturais não faltam na região. Entre os dois municípios, existia um coqueiro torto. A árvore – também assombrada, segundo relatos – tinha o formato de espiral. Moradores antigos das redondezas afirmam que o local do coqueiro já foi utilizado para desova de corpos, por isso, passou a existir algo aterrorizante no ambiente. Outra versão constata que um suicídio que amaldiçoou o local. A população também buscava evitar o caminho durante à noite. A árvore balançava sozinha, mesmo sem vento algum. Vozes estranhas podiam ser ouvidas ali por perto. O coqueiro morreu e sobraram só as escoras, feitas para sustentar a árvore. Coincidência ou não, os restos do coqueiro estão posicionados em formato de cruz.

CONTOS E CAUSOS

Assim como a literatura, a tradição oral – mesmo que de forma fantástica – apresenta traços importantes para a interpretação do contexto social de uma determinada época. Os famosos causos costumam apresentar traços que podem identificar costumes, tradições e diferente formas de se viver. Contos rurais, indígenas e urbanos não tratam apenas de realidades misteriosas, sem espaço para céticos. Até aqueles que duvidam de tudo que não seja palpável podem encontrar explicações plausíveis sobre vivências passadas, em forma de causos.

O jornalista Francismar Lemes trabalhava no antigo Jornal de Londrina. Na época, o periódico publicava uma série especial, toda quaresma, sobre causos surreais do imaginário popular londrinense. Batizado como “Lua cheia”, o projeto fez sucesso por vários anos. O repórter cobriu vários desses casos e destaca a importância das histórias sobrenaturais. “Na sociedade, o místico é algo muito importante. Isso te forja, isso te forra. É importante você ter um escape da nossa dura realidade e viver uma realidade diferente. O fantástico tem relação direta com o que vivemos e nos influencia o tempo todo”, afirma o jornalista.

Assim como a história de João, uma das histórias mais marcantes para Lemes foi uma história que se passa no meio rural. “Na estrada da Prata, em Cambé, o povo tem muito medo de circular por ali à noite. Os moradores veem uma luz estranha pela estrada. Fomos fazer uma matéria de gastronomia em um restaurante e, na volta, fomos cobrir a história. Chegamos no local à meia-noite. Coincidentemente, passamos na ida em frente a uma árvore na beira da estrada. Aquelas desgalhadas, típicas de filmes de terror. Quando voltamos, ela estava em um lugar completamente diferente. A mesma árvore, não tinha dúvidas, mas ela estava do outro lado da estrada. No fim da estrada, o rádio também perdeu o sinal”.

A árvore indecisa com o lugar que deveria cravar sua raiz não chega a ser o ápice da história. O jornalista foi investigar o local. Ao falar com a população local, descobriu estar mais conectado com a matéria do que imaginava. “A história que contaram para gente é de um caminhoneiro desceu na estrada para conferir alguma coisa na carga de toras que carregava. As toras enormes se soltaram e caíram no motorista. Ele morreu esmagado. Lembrei que tinham me contado essa história na infância, sem mais detalhes. Meu tio havia me contado. Depois que fiz a matéria, em um encontro com o meu tio, a história veio à tona. Eu disse que tinha feito a reportagem e contei detalhes. ‘Em qual estrada foi isso?’, ele me perguntou. Quando disse que era na estrada da Prata, ele me contou que a história era familiar. O motorista morto, na verdade, era irmão do meu tio. Esse é um causo que estava dentro da minha família e descobri por causa da série”.

*(supervisão Patrícia Maria Alves/editora)

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