Imagem ilustrativa da imagem O fura-bolas
| Foto: Marco Jacobsen

Quando cheguei em Londrina no ano de 1978 fui morar na Vila Recreio, que apesar de ficar pertinho do centro, naquele tempo parecia separada dele devido à existência da linha férrea que dividia a cidade. Existiam duas Londrinas, uma abaixo da linha do trem e outra acima.

Além disso, o Centro Social Urbano mais conhecido como “buracão”, representava outro fator de distanciamento geográfico entre a vila e o centro. Sem avenidas e ruas extensas, o bairro se caracteriza por ruas curtas, algumas com poucos quarteirões.

A rua em que eu morava tinha oito casas de cada lado, totalizando dezesseis residências. Não havia terreno vazio. Por isso, fazíamos da rua uma extensão das nossas casas. Uma verdadeira rua de recreio, onde pular corda e jogar futebol eram atividades cotidianas.

Os rapazes preferiam jogar futebol, mesmo a rua apresentando um pequeno declive, o que dava uma enorme importância à disputa do par ou ímpar para ver quem iria jogar a favor ou contra a descida. Jogar contra implicava em correr mais e ter que buscar a bola rua abaixo durante grande parte da pelada.

As traves dos golzinhos eram improvisadas por latas ou tijolos. O comprimento do campo não passava de dez ou doze metros e a largura ia até o meio-fio, que fazia parte do campo. Sem goleiros, cada time contava com três ou quatro jogadores. Era o time dos com camisas contra os sem camisas.

Geralmente o jogo era no final da tarde e éramos quase felizes. Esse quase se devia ao fura-bolas. O fura-bolas morava bem ao lado do campo, quer dizer, da rua. Era um alemão forte e alto, em torno dos 35 anos de idade, que trabalhava como mecânico em uma empresa de motores de caminhões. Sempre usava luvas de trabalho, o que fazia suas mãos parecerem bem maiores. Nenhum de nós tinha interesse em enfrentá-lo. Assim, quando a bola caía no terreno dele o jogo era dado como encerrado, ficando válido o placar daquele momento até recomeçar num outro dia qualquer.

Ninguém ousava pular aquele muro e na manhã seguinte ficávamos esperando para ver se a bola rasgada daria conserto. Nunca dava. Ficávamos alguns dias sem jogar, até arranjarmos outra bola. Por isso jogávamos com qualquer tipo de bola: de couro, de pano, de borracha, de plástico e até bolinha de tênis, pois sabíamos que qualquer que fosse, teria vida curta.

Nossas contas contabilizavam uma bola perdida por semana. Embora nos respeitássemos, cada lado consciente daquilo que fazia, a nossa relação com o fura-bolas era um jogo de gato e rato, polícia e ladrão, que parecia nunca ter fim. Mas teve. Como fazia toda garotada, nossas peladas eram narradas em tempo real pelos próprios jogadores e representávamos os grandes times do futebol brasileiro: Santos, Flamengo, Corinthians, Palmeiras, Vasco e outros.

Acontece que o alemão tinha um filho que adorava futebol. O menino tinha uns 10 anos e ficava atrás das grades do portão olhando a gente jogar, sempre vestido com a camiseta do Flamengo, até que um dia passou do portão e pediu pra jogar, sendo aceito de modo natural pela turma. Daquele dia em diante o menino voltava da escola e ficava na expectativa de acontecer a pelada.

O alemão passou a observar o filho jogando na rua. Primeiro do fundo da garagem, depois debaixo do pé de goiaba e mais tarde se aproximou do muro. Então ficava sorrindo cada vez que o seu filho dava um drible e aplaudia se ele marcasse um gol.

Voltamos a ser felizes, pois agora o fura-bolas nos devolvia de imediato quando a bola caía no seu quintal. Eu era o mais velho do grupo e dizia que, no futebol e na vida, nada é impossível. Mas fiquei boquiaberto quando soube que no Natal daquele ano ele havia comprado duas bolas novas: uma para o filho e outra para a molecada da rua.

Gerson Antonio Melatti, leitor da FOLHA

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