Imagem ilustrativa da imagem DEDO DE PROSA - Em defesa do João de Barro
| Foto: Marco Jacobsen

Sempre que ouço o canto de um joão-de-barro eu lembro do meu pai. Sua música preferida era a toada caipira João de Barro, composta por Teddy Vieira e Muíbo Cury, gravada em 1956 por Mineiro e Manduzinho.

O joão-de-barro, também chamado de forneiro (Furnarius rufus), é uma espécie nativa da América do Sul, habita em áreas de pouca vegetação e passa a maior parte do tempo no chão. É ave símbolo da Argentina e está presente na maioria dos estados brasileiros, sendo um pássaro dócil que convive com facilidade nos espaços urbanos.

Tamanha popularidade originou lendas e estórias a seu respeito, algumas falsas e outras verdadeiras.

Entre os índios avá guarani há uma lenda sobre a jovem Kuairúi, que se apaixonou por Tiantiá, um corajoso guerreiro. Eles queriam se unir, mas o cacique Tabáire, pai da índia, não permitiu a união alegando que mesmo tendo bravura Tiantiá não sabia construir uma cabana. Para que o amor dos jovens não fosse destruído, o pajé os transformou em um casal de joões-de-barro, dando-lhes a habilidade de se ajudarem na construção do ninho. É por isso que os casais de joões-de-barro permanecem unidos por longo tempo, trabalham arduamente para fazer sua morada e gostam de cantar juntos na entrada da casa.

Para a construção escolhem locais abertos, palanques de cercas, galhos de árvores e postes de iluminação. No vai-e-vem em busca de barro úmido, esterco e palha, constroem como moradia uma bola de barro que lembra um forno de pizza, dividida em dois compartimentos. Para entrar na casa tem que passar por um corredor em forma de “L”, que leva a uma câmara onde a fêmea irá botar os ovos, protegendo os filhotes dos predadores, da chuva e do vento. Trabalhador incansável, o joão-de-barro passa o ano envolvido na construção de uma nova casinha ou consertando ninhos antigos que foram destruídos por outros animais, pois os ninhos vazios podem ser ocupados por outros pássaros, abelhas, cobras e pererecas.

O joão-de-barro faz parte do folclore de várias regiões, sendo personagem de muitas estórias.

A mais conhecida, que é retratada na famosa música, relata que o macho trancou sua fêmea infiel no ninho até a morte. Outros ditos populares afirmam que o pássaro é religioso pelo fato de não construir a moradia aos domingos e dias santos e que faz o ninho com a abertura na direção oposta ao vento e à chuva. Estudando esses conhecimentos, biólogos e ornitólogos chegaram à conclusão de que se tratam de duas estórias falsas e uma verdadeira. Foi comprovado que existem casas de joão-de-barro completamente fechadas, mas o passarinho nunca foi visto fazendo esse serviço. Uma explicação está no fato de que a casinha abandonada é uma ótima cavidade para insetos se estabelecerem.

Algumas espécies de abelhas utilizam lugares ocos para construir a colmeia e usam cera para diminuir a abertura. Quando isso não é bem observado fica a impressão de que o ninho foi fechado pela ave, mas na verdade foi tampado pelas abelhas. A afirmação de que as aves não trabalham aos domingos e dias santos é fácil de desmentir, bastando uma observação atenta durante a construção do ninho, que leva em torno de vinte dias de trabalho ininterrupto. O que pode acontecer é o joão-de-barro parar o trabalho quando chove pouco e não existe barro úmido para utilizar. Sobre a construção da casa com a abertura no sentido contrário à chuva, os cientistas confirmam que o joão-de-barro aprende, no decorrer da vida, a identificar a direção dos ventos. Como ele procria na primavera, é capaz de identificar qual a direção das correntes de ar predominantes nessa época.

Não tenho a intenção de desfazer mitos e estórias que fazem parte da cultura popular. Mas no caso da agressão à fêmea pelo joão-de-barro, isso precisa ser corrigido, pois certamente ele agiria em prol da liberdade da sua amada, tal qual o desfecho da música, onde fica claro que o verdadeiro amor liberta e não escraviza. Por fim, achar que o joão-de-barro poderia enclausurar sua companheira faz parte da visão equivocada que temos a respeito da natureza, imaginando que os animais são capazes de atos de vingança e desamor, defeitos tão presentes nos seres humanos.

Gerson Antônio Melati, leitor da FOLHA

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