Imagem ilustrativa da imagem Todo mundo quer ser um filtro do Instagram
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Há 50 anos, Chico Buarque cantava Construção, sobre as mudanças nas relações sociais e de trabalho com o início da Ditadura Militar. Em 2019, o cantor Tiago Iorc fez sua versão: Desconstrução; que retrata as mudanças nas relações sociais que vivemos na atualidade, especialmente, as baseadas em redes sociais e como essas interações nos coloca, também, em uma “ditadura”. As redes de conexões que vieram para facilitar a vida e aproximar pessoas, têm sido prejudiciais em muitos aspectos, dentre eles, se destaca a distorção da realidade causada pelos filtros que mudam a aparência na tela e que minam estima das pessoas de todas as idades em relação aos espelhos. Em alguns casos, essa divergência entre o real e o virtual é capaz de desenvolver transtornos psicológicos, um deles já identificado, em publicações de psiquiatria especializados, como a Dismorfia de Snapchat.

O termo se origina da desordem psiquiátrica e psicológica TCD (Transtorno Dismórfico Corporal), quando a pessoa tem um grande sofrimento relacionado a alguma coisa em sua aparência. O psicólogo do Ambulatório de Transtornos Alimentares do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clinicas da Faculdade de Medicina da USP, Fellipe Augusto De Lima Souza, explica que no caso do TCD, parte desses incômodos são imaginários ou existe uma dissociação entre como a pessoa percebe aquilo e como realmente é, por isso outras pessoas não conseguem identificar a queixa ou vê-la com a mesma intensidade que a pessoa com o transtorno vê.

E como isso se relacionou ao Snapchat? Um estudo feito por pesquisadores da Universidade de Boston, nos Estados Unidos, apontou que as pessoas estão pedindo cada vez mais para ficar parecidas com os filtros usados nas redes sociais, que teve início no famoso aplicativo lançado há apenas 10 anos, julho de 2011. “A tecnologia e seu uso está sim trazendo várias alterações, muitas vezes dismórficas e outras vezes situações que se o paciente não tivesse essa tecnologia ele não teria essa queixa ou esse desejo de modificar algo na sua face”, aponta o cirurgião plástico Vinícius Vasconcellos, membro da SBCP (Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica) e professor de medicina em Maringá na Unicesumar e Uningá.

O censo de 2018 feito pela Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica mostra que 60% dos procedimentos cirúrgicos realizados são estéticos. Em comparação com o censo anterior, de 2016, houve um aumento de 25% e esse dado condiz com o relato de Vasconcellos. Para o cirurgião, já faz parte da rotina as pessoas chegarem na consulta e mostrarem uma foto com um filtro do Instagram, pedindo para ficar igual. A maioria desses filtros alteram drasticamente o formato do nariz, fazendo com que ele fique mais fino, influenciando diretamente na procura pela rinoplastia. Segundo o médico, esse é o procedimento facial mais procurado em seu consultório.

Para a designer gráfica em agência de marketing digital, de 22 anos, Maria Liria Cortegoso essa é a parte de seu corpo que mais lhe incomoda: “meu nariz sempre foi uma questão por meu avô ficar me chamando de nariguda desde nova, mas nunca me importei ou achava de fato, até ver a diferença de com e sem filtro, que é sempre gritante. E aí é o que mais passou a me incomodar”. Vasconcellos complementa: “Por conta do maior uso da tecnologia, a gente nota que os mais jovens têm procurado mais procedimentos”. Além disso, a maioria dos seus pacientes são mulheres, numa proporção de 70% para 30% de homens.

Maria Liria Cortegoso
Maria Liria Cortegoso | Foto: Arquivo pessoal

Para Maria Liria Cortegoso enviar fotos sem filtros já não é mais possível

Outra alteração comum dos filtros é na boca, fazendo com que os lábios fiquem maiores. Essa moda de lábios carnudos foi lançada há alguns anos pelas Kardashians – influenciadoras digitais norte-americanas – e foi intensificada agora com os filtros, que inicialmente reproduziam a aparência delas. Segundo a dermatologista Fabiana De Mari Scalone, “toda semana vem um paciente procurar por algum procedimento que se interessou na internet” e, na grande maioria das vezes, esse procedimento é o preenchimento labial. Ainda segundo o censo de 2018, o preenchimento ficou em segundo lugar no tipo de procedimento não cirúrgico mais realizado, com 89,6% e perdendo apenas para a toxina botulínica – o famoso botox. A confeiteira autônoma de 23 anos, Ariel Oliveira de Avellar afirmou que já teve vontade de fazer o botox para diminuir suas linhas de expressão, além de outros procedimentos como colocar silicone. “Sei que isso tudo é muito natural do nosso corpo, porém com a grande saturação de ‘bonecas Barbie’ nas redes sociais, faz parecer que o jeito errado é não ter tudo no lugar e uma pele lisinha.”, afirma.

Ariel Avellar
Ariel Avellar | Foto: Arquivo pessoal

Ariel Avellar expõe a diferença com e sem filtro

COM TODA ESSA PROCURA, COMO DIFERENCIAR UM DESEJO ESTÉTICO DA DISMORFIA DO SNAPCHAT?

“A dismorfia do Snapchat está relacionada ao sentimento de pertencimento e de ser valorizado”, aponta Souza. Para o psicólogo, a pessoa que possui dismorfia não vai nunca ficar satisfeita com o procedimento que fizer e vai continuar procurando as cirurgias para ficar melhor nas selfies e pertencer ao padrão, que consequentemente é relacionado ao sucesso e a aceitação.

Antes da internet, a nossa sociedade já tinha padrões de beleza bem estabelecidos, com normas que ditavam como deve ou não deve ser o corpo e a aparência das pessoas. Com o surgimento das redes sociais, apesar de se ter construído um espaço de discussão desses padrões, eles acabaram intensificados pelos influenciadores digitais. “Se a gente olhar as redes sociais de grandes influencers, geralmente eles seguem um padrão estético: nariz mais fino, bocas e olhos maiores, harmonização facial. E tudo isso vai passando uma imagem de sucesso”, diz o psicólogo. Essa imagem de sucesso atrelada a aparência cria uma padronização facial e motiva as pessoas a mudarem para se encaixarem nesse padrão.

Além disso, com a pandemia, as pessoas passaram a ficar muito mais tempo conectadas, tanto para trabalho quanto para lazer, como mostra o estudo “Como a pandemia transformou nossos hábitos digitais?” feito pela empresa Integration da Loures Consultoria, que é especializada em dados e insights. Segundo o estudo, 73% das pessoas entrevistadas disseram que aumentaram o uso das redes sociais desde o início da pandemia em março de 2020.

O número de pessoas consumindo conteúdo aumentou, assim como o número de pessoas produzindo esse conteúdo. Com isso, o consumo em massa, principalmente das redes sociais, fez com que as pessoas questionassem vários aspectos da sua vida pessoal, inclusive sua aparência. Para Souza, “as pessoas começaram a ser confrontadas constantemente com a própria imagem” fazendo com que elas ficassem “mais hipersensíveis a alguns pontos do próprio rosto ou do corpo que até então não era perceptível”, motivando, até, uma mudança estética permanente.

Para várias pessoas, inclusive, tirar foto sem filtro já não é mais uma opção. Cortegoso conta que não consegue enviar uma imagem instantânea sem o filtro. “Sempre que vou mandar/gravar um ‘stories’ pra falar com alguém, ou mandar uma foto no Whatsapp mesmo, corro para pegar um filtro, até tento tirar sem, aí me frusto e vou para o ‘filtrinho’. Mas ao mesmo tempo não teria coragem de postar uma foto no feed com filtro por medo de criar uma ilusão em alguém que veja e depois essa pessoa me encontre pessoalmente e se decepcione”.

Arquivo pessoal
Arquivo pessoal | Foto: Maria Liria Cortegoso

O medo das comparações e julgamentos é uma realidade para Maria Liria Cortegoso

HARMONIZAÇÃO OU PADRONIZAÇÃO?

Tiago Iorque já alertou “Nas aparências todos tão iguais”. A harmonização facial que tantos influenciadores digitais tem feito é algo que divide opiniões. Vasconcellos explica que existe a harmonização e a padronização facial, e muitos pacientes tem procurado pela padronização, todos com queixos e mandíbulas bem marcados e lábios volumosos. O cirurgião plástico alerta que isso pode não combinar com todas as pessoas ou ficar artificial, sem valorizar a beleza natural. “Cada paciente tem sua limitação, sua anatomia e seu biotipo...nessa divulgação em massa das redes sociais todo mundo é colocado no mesmo balaio”, acrescenta Vasconcellos. Não se afetar pelos padrões é difícil expõe Cortegoso, “direto vejo algo e fica muito difícil não desejar um outro corpo, pensar em começar uma dieta, ir atrás de procedimentos, querer coisas novas, a necessidade de se sentir bonita e que as pessoas te achem bonita como se para ser bonita tivesse que ser igual aquele jeito lá que tantas pessoas disseram que é bonito”.

A psicóloga Heloisa Haggi explica que essa constante comparação entre corpos e vidas é um fator que pode até mesmo desencadear ou agravar uma depressão. Especialmente durante a pandemia, quando muitas pessoas não conseguiram ser produtivas, estavam fazendo o isolamento social corretamente, tiveram sua saúde mental abalada e perceberam mudanças em seus corpos. Ao mesmo tempo viam nas redes sociais pessoas que não pareciam estar abaladas pela pandemia, no auge de sua positividade, produtividade, com uma alimentação excelente e fazendo exercícios físicos regularmente.

“Eu já deixei de seguir muitas pessoas por perceber que ver elas ali na tela do meu celular todos os dias me fazia ficar ruim. Não só porque elas possuíam o corpo e rosto perfeitos, mas aparentemente a vida perfeita também. O que a gente sabe que não é verdade”, relatou Avellar.

Imagem ilustrativa da imagem Todo mundo quer ser um filtro do Instagram
Imagem ilustrativa da imagem Todo mundo quer ser um filtro do Instagram

Ariel Avellar agora só usa os filtros como brincadeira, não mais em todas as fotos

REDES SOCIAIS E A SAÚDE MENTAL

Estar sempre conectado, a checagem constante de notificações, o bombardeamento de informações é algo que quase todos que tem celular e estão nas redes sociais sentiram aumentar desde o início da pandemia. Haggi esclarece que esses fatos podem colaborar para que as pessoas desenvolvam outros transtornos como a ansiedade e a depressão. O acesso constante a notícias caóticas pode fazer com que as pessoas fiquem mais ansiosas, assim como a comparação com a vida de outras pessoas pode criar um quadro depressivo. Como cantou Tiago Iorc em Desconstrução: “Ninguém notou a sua depressão; Seguiu o bando a deslizar a mão; Para assegurar uma curtida.”

O vício nas redes pode ser danoso à saúde mental e a psicóloga lista quais hábitos podem caracterizar isso. Entre eles, estão: perder a noção do tempo, mudar sua rotina para ficar mais tempo conectado, preferir conversar com as pessoas pelas redes sociais do que de forma presencial e ficar angustiado quando não está conectado. “É uma linha muito tênue, porque hoje é necessário a gente estar conectado. Mas é preciso ficar atento quando você não consegue se desligar e quando acaba afetando a sua rotina”, alerta Haggi. Segundo a psicóloga, é tudo uma questão de intensidade e frequência, já que a opção de simplesmente parar de usar as redes sociais é muito difícil nos dias de hoje.

*Supervisão da editora Patricia Maria Alves

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