Estamos em novembro de 2021 e a Alemanha enfrenta uma quarta – e mais forte – onda da Covid-19 no país, com aumento de mortes e sobrecarga na ocupação dos hospitais. Mas, diferente dos outros momentos da pandemia, em que todos os cidadãos estavam vulneráveis, regiões com baixos índices de vacinação já são as mais afetadas agora. “É uma pandemia de não-vacinados”, alertou Jens Spahn, ministro alemão da Saúde. O grupo de negacionistas, que rejeita a imunização e questiona a eficácia e a qualidade das vacinas, oferece um risco ainda maior: a do surgimento de novas variantes.

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| Foto: Isaac Fontana/FramePhoto/Folhapress

“No Brasil, você tem uma distribuição mais igualitária das vacinas. Há cidades com quase 100% de pessoas totalmente imunizadas, a maior parte segue a média de quase 60%. Nos Estados Unidos, por exemplo, há regiões em que não há sequer 20% de vacinados, porque os moradores desses locais pregam contra os imunizantes. Como o vírus circula livremente entre essas pessoas, o risco de hospitalização e mortes é maior e, o que é mais sério, há possibilidade de surgimento de cepas que podem ser mais agressivas e colocar em risco todo o esforço mundial contra o avanço da pandemia”, explica o infectologista Renato Moraes.

O risco de novas variantes também existe quando o vírus circula mesmo em áreas com alto índice de imunização. “A característica em comum dessas regiões anti-vacina, de fora do país, e algumas do Brasil vacinado, é o abandono das medidas de proteção, como uso de máscaras e distanciamento social. Como há uma flexibilização normal, motivada pelo avanço da vacinação e a queda de mortes e internações, esses cuidados acabam ficando de lado. Mas, embora as pessoas estejam com menos sintomas e mais seguras, podem continuar a se infectar, transmitir o vírus e elevar o risco do surgimento de variantes resistentes. Por isso é tão importante manter alguns cuidados”, aponta Moraes.

Entre os alemães, organizações de médicos relataram que clínicas têm enfrentado ameaças de negacionistas anti-vacina. Alguns receberam cartas dizendo que “as vacinas são perigosas” e acusando os profissionais de “realizar experimentos humanos”. Enquanto isso, o país bateu o recorde da taxa de incidência da doença desde o início da pandemia, com 303 novos casos por 100 mil pessoas nos últimos sete dias. A região da Saxônia tem a maior taxa de incidência do país, de 754 por 100 mil habitantes, e a menor taxa de vacinação, com apenas 57,5% da população do estado totalmente vacinada. Em toda a Alemanha, 67,5% da população está atualmente vacinada. Na quinta-feira passada, o país registrou o maior número de novos casos em todo o mundo, com 50.377 pessoas com teste positivo.

“É triste imaginar que países onde os índices de escolaridade e de acesso à informação são tão grandes, como Alemanha e Estados Unidos, enfrentam esse tipo de coisa. Mas mostra como o problema da desinformação é crônico em todo o planeta. A vantagem aqui no Brasil é que o brasileiro sempre acreditou na vacina, sempre aderiu às campanhas de vacinação. É um trunfo grande num panorama como esse”, destaca o infectologista. O papel das teorias conspiratórias e informações falsas na influência sobre a disposição das pessoas em se vacinar foi estudado por pesquisadores do Imperial College London, da London School of Hygiene and Tropical Medicine, no Reino Unido, e da Universidade Washington, nos Estados Unidos. Publicado em março na Nature Human Behaviour, um levantamento feito com 8.001 participantes, entre britânicos e norte-americanos, investigou o quanto os participantes estavam dispostos a receber ou não a vacina contra a Covid-19. Após uma primeira fase, eles foram divididos em dois grupos: um, composto por 6.001 pessoas, foi submetido a uma bateria de informações falsas sobre as vacinas. Outro, com 2.000 participantes, teve contato com fatos e informações verdadeiras sobre os imunizantes. Na sequência, as mesmas perguntas iniciais, sobre a disposição em receber as vacinas contra a Covid-19, foram repetidas. O resultado foi que o número de participantes que “definitivamente” tomaria a vacina caiu 6,2% no Reino Unido e 6,4% nos Estados Unidos no grupo que recebeu informações falsas, indicando uma relação direta das fake news sobre a disposição para a vacinação.

“Agora você imagine o poder dessas mentiras circulando com velocidade pelas redes sociais. O ser humano tende a buscar, seja no depoimento alheio, seja em notícias, indícios que comprovem aquilo em que elas já acreditam. A gente não gosta de mudar de ideia, de aceitar que está errado. Então quando você tem um alto número de notícias falsas correndo e encontrando pessoas ávidas por serem enganadas, o resultado é assustador. É o que estamos enfrentando nos últimos anos”, analisa a antropóloga Maria Cristina Neves. Em vários casos, o negacionismo de agora é o arrependimento de amanhã. Na linha de frente no atendimento aos pacientes, Moraes diz já ter perdido a conta do número de pessoas que lamentam não ter se vacinado ou ter tomado cuidados. “Atendi muitos profissionais da saúde, por exemplo, que poderiam ter se vacinado logo no início da campanha e recusaram. Acabaram doentes, com comprometimento dos pulmões, em estado grave e choravam, tristes por não terem aproveitado a oportunidade de se vacinar. Tinham o discurso do ‘vou esperar um pouco mais’, mas a doença não espera. Infelizmente, alguns perderam a vida”, desabafa o infectologista. No Rio de Janeiro, um idoso que queria se vacinar e não foi levado pela família, que pregava contra os imunizantes, ganhou as manchetes.

“Quando ele entrou aqui, chorou muito porque dizia que queria se vacinar, mas a família dele era toda contra e ele não tinha como ir sozinho. Ele acabou não se vacinando e chorava porque tinha certeza que não iria se salvar", contou o diretor do Hospital Ronaldo Gazolla, Roberto Rangel. O idoso foi internado e não resistiu. “Vacinação é um pacto coletivo. Quando uma pessoa diz que não vai se vacinar porque é direito dela, ela acaba, no seu egoísmo, impactando a vida de outras pessoas. Às vezes de forma fatal, o que é lamentável”, avalia Moraes.

Apesar dos negacionistas, o infectologista crê que o fim está próximo. “Estamos em uma situação bem melhor do que há um ano, quando enfrentávamos o início da segunda onda. Devemos ter um fim de ano bem mais tranquilo e seguro do que em 2020, mas manter cuidados como máscara e evitar aglomerações ainda é bastante prudente”, explica Moraes.

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